“O que principalmente danou estes feitos foi, e é, quererem em estes Reinos usar das práticas de Castela, e todos por seu proveito, e cada um levar sua enxavata” – D. Pedro, Duque de Coimbra
Os portugueses têm assistido, atónitos, ao desfilar de personalidades pela “Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar da Assembleia da República às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução sobre o Novo Banco” e, ainda mais às declarações que lá são proferidas. Em particular, os chamados grandes devedores, desde Bernardo Moniz da Maia a Luis Filipe Vieira e Nuno Vasconcelos, passando por João Gama Leão. Mas as declarações do ex-ministro das Finanças Mário Centeno que hoje é Governador do Banco de Portugal, até ao actual presidente do Novo Banco António Ramalho, passando pelo presidente do Tribunal de Contas José Tavares, pelo anterior Governador do Banco de Portugal Carlos Costa e por Luis Máximo dos Santos presidente do Fundo de Resolução, entre outros responsáveis, são também pelo menos surpreendentes, sobretudo pelo que revelam dos nossos sistemas financeiro e político.
Recordando de forma resumida o que está em causa: os pagamentos ao Novo Banco pelo Fundo de Resolução, decorrentes da venda de 75% do banco em 2017 ao Fundo Lone Star. Esta venda, negociada pelo Governo de António Costa, sendo Mário Centeno ministro das Finanças e pelo Banco de Portugal sendo seu Governador Carlos Costa, teve aquilo a normalmente se chama “side letters”, algumas das quais ainda não serão do conhecimento público. Mas há algo que é público: a Lone Star não pagou nada pelo Banco, tendo injectado mil milhões de euros no próprio banco e garantiu a possibilidade de o Fundo de Resolução injectar, num período limitado, até 3,89 mil milhões de euros no Novo Banco, dos quais já foram utilizados até hoje quase 3 mil milhões. Aquando da venda, quer António Costa, quer Mário Centeno garantiram juntos em conferência de imprensa que a venda, e cito, «não terá impacto direto ou indireto nas contas públicas, nem novos encargos para os contribuintes, constituindo uma solução equilibrada». Hoje podem apresentar-se as mais diversas justificações e razões para o sucedido, mas o que foi dito e o que foi feito está à vista de todos e os responsáveis pela venda desastrosa têm nome: António Costa, Mário Centeno e Carlos Costa.
Os testemunhos da elite económica e financeira portuguesa que foi chamada a depor na Comissão da AR mostram bem como o antigo BES e o seu responsável máximo Ricardo Salgado usaram determinadas pessoas, algumas com nome firmado na economia nacional, para atingirem os seus objectivos, nomeadamente de domínio de grandes empresas e outros bancos. De caminho, afundado o BES, ficaram à vista desaparecimentos de empréstimos de montantes obscenos, sempre da ordem das centenas de milhões de euros. Alguns desses “empresários” com dinheiro alheio nem sequer reconhecem ter quaisquer dívidas, dado que as empresas utilizadas para obter os financiamentos ou já faliram ou foram sucessivamente «renegociando» os contratos com o banco, desaparecendo sempre umas dezenas de milhões de euros em cada uma dessas renegociações. Característica constante das declarações à Comissão da AR é a alegação de desconhecimento e mesmo de falta de memória sobre o sucedido. Como se negócios de centenas de milhões de euros fossem algo de vulgar, que fizessem todos os dias. Tudo isto ficou claro perante toda a gente pelo que, se para outra coisa não servir, esta Comissão Eventual da AR já teve um papel importante.
Os responsáveis pelo sucedido com o BES terão eventualmente, algum dia, os castigos que a Justiça entender dar-lhes. Mas os portugueses não precisam de decisões judiciais para perceberem algumas coisas, hoje evidentes para todos, embora alguns tentem ainda lançar cortinas de fumo para tentar esconder a realidade. A tentativa de Ricardo Salgado dominar grande parte da economia portuguesa é hoje clara, para o que estabeleceu uma parceria com o poder político de então, isto é, o governo chefiado por José Sócrates. Aqueles “empresários” que hoje dizem não ter dívidas ou não se lembrarem do sucedido foram testas de ferro no domínio da PT, então a empresa portuguesa mais valiosa e hoje desaparecida, como o foram na tentativa de assalto ao BCP, que quase também ia na onda. A corrupção não foi apenas individual, mas sistémica. E a economia portuguesa sofreu um abalo gigantesco que todos os portugueses estão, na prática, a pagar.
Termino esta crónica com outra citação de D. Pedro, Duque de Coimbra datada de 1426:
“A Justiça tem duas partes. Uma é dar a cada um o que é seu. E a outra dar-lho sem delonga. E, ainda que eu cuido que em vossa terra igualmente falecem, da derradeira sou bem certo”.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Maio de 2021
Imagens retiradas da internet
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