segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

STA. CRUZ E OS MÁRTIRES DE MARROCOS

 


Quando passo pela Baixa, tenho por hábito entrar no Mosteiro de Santa Cruz, demorando-me a apreciar um dos muitos pormenores em que aquele templo é riquíssimo, Tantos são, e de tanto interesse do ponto de vista cultural e histórico, para além dos aspectos artísticos, que me dá a impressão de que nunca terei tempo para os apreciar a todos como merecem. De facto, Sta. Cruz não precisaria de ser classificada como Património Mundial da Humanidade, que o é de forma inteiramente justificada, para que seja merecedora da nossa maior atenção e cuidados de quem tem a responsabilidade de cuidar do nosso Património Histórico. A importância histórica de Sta Cruz não tem a ver apenas com Coimbra, mas com Portugal por inteiro, por isso mesmo sendo Panteão Nacional, ao guardar os túmulos dos nossos dois primeiros reis.

Há poucos dias estive a observar com atenção o conjunto escultórico dos «Mártires de Marrocos» e fotografei-o, partilhando a fotografia em redes sociais, o que hoje é facilitado por todos termos a possibilidade de ser fotógrafos, bastando ter um telefone à mão. E foram as reacções à fotografia que me levaram a escrever esta crónica. Por um lado foi possível perceber que há muitas pessoas que desconhecem os factos relacionados com os «Mártires de Marrocos» e, por outro lado, há quem se queixe de deficiente divulgação dos mesmos.

Na realidade, foi no dia 16 de Janeiro de 1220, era um Sábado, que se verificou o martírio dos cinco frades franciscanos italianos Frei Bernardo de Carbio, Frei Otto, Frei Pedro de Santo Geminiano, Frei Adjuto e Frei Acursio. Para termos um enquadramento histórico, era a época das Cruzadas que se tinham iniciado em 1096 e também da reconquista cristã da Península Ibérica, que viria a terminar, no que a Portugal diz respeito em 1249, com a conquista definitiva da cidade de Faro, no reinado de D. Afonso III.

Após a aprovação da sua Ordem em 1210, S. Francisco de Assis enviou em Maio de 1219, a partir de Assis, um grupo de seis frades menores para exercerem o apostolado junto dos sarracenos, em Marrocos. Durante o caminho Frei Vital, o líder do grupo, adoeceu não tendo podido seguir viagem. Os cinco elementos restantes prosseguiram viagem até Coimbra, onde se alojaram no Mosteiro de Sta Cruz, tendo sido recebidos pela rainha D. Urraca, esposa de D. Afonso II. Aí terão influenciado tanto o monge agostinho Fernando de Bulhões, que veio a aderir à nova Ordem com o nome de António, sendo mais tarde conhecido como Santo António de Lisboa, de Pádua e do mundo. O grupo seguiu depois para Sevilha, ainda sob domínio muçulmano, tendo aí começado as suas pregações que tiveram como resultado a sua detenção pelo Emir que os enviou para Marrocos. 

Em Marraquexe, passou-se algo curioso: foram acolhidos pelo Infante Dom Pedro, irmão do rei D. Afonso II e das princesas Teresa, Mafalda e Sancha, que se encontrava ao serviço militar na Corte do Sultão algo que, só por si, mereceria um estudo aprofundado, dado o seu significado. Contudo, a obstinação evangelizadora dos frades era tão grande que, a certa altura, o próprio califa almóada Miramolim os executou com a sua cimitarra, degolando-os um a um. O Infante Dom Pedro, com risco da própria vida, conseguiu resgatar parte dos restos mortais dos frades e enviá-los para a capital do Reino de Portugal – Coimbra, onde terão chegado em Dezembro de 1220. O destino era a Catedral de Coimbra, hoje a Sé Velha, mas diz a tradição que a burra que carregava os dois caixões com os restos mortais, ao passar pelo Mosteiro de Sta Cruz, recusou seguir em frente, entrando pela Igreja ao serem abertas as portas, no que é conhecido pelo «Milagre da Burra».


Ainda hoje o Mosteiro de Sta. Cruz guarda dois relicários de prata com restos mortais dos «Mártires de Marrocos. Durante o ano de 2020, em celebração dos oitocentos anos do martírio, os relicários estiveram expostos em Sta. Cruz e foram feitas publicações sobre o tema. Mas, provavelmente devido ao seu carácter essencialmente religioso, a divulgação e a atenção que o episódio merece, do ponto de vista histórico, mas também cultural e artístico, pelas numerosas obras de arte que foram sendo executadas ao longo dos séculos, não terão sido as merecidas. Da forma mais resumida que me foi possível, atendendo ao espaço desta página do jornal, aqui fica a História dos «Mártires de Marrocos», apenas um dos muitos motivos de interesse da nossa Sta. Cruz, pela qual tantas vezes passamos sem imaginar os tesouros que alberga.

Originalmente publicado no Diário de Coimbra em 6 de Dezembro de 2021

 

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