segunda-feira, 14 de março de 2022

Utopia em choque com a realidade

 


As reacções dos partidos portugueses mais à esquerda à invasão da Ucrânia pela Federação Russa e, mais ainda, as reacções dos restantes partidos a essas mesmas reacções dão que pensar a qualquer cidadão minimamente atento ao que se passa. Até por serem todas muito significativas.

Resumindo, o PCP e o BE começaram por reagir à guerra com uma nítida posição favorável à Rússia. Posteriormente fizeram uma inflexão, mais o BE do que o PCP, manifestando-se contra todas as guerras, mas não deixando de apontar as razões desta, não como manifestação de imperialismo russo puro e simples, mas como residindo no ambiente belicista criado pelo ocidente e, em particular, pelos EUA. De caminho apontam a existência de grupos de neo-nazis na Ucrânia, o que é um problema real, mas esquecendo que na Rússia e noutros países do leste europeu existem grupos idênticos. Já no espectro da direita, as reacções a estas posições da extrema-esquerda nacional apontam genericamente para que se devam a um saudosismo da antiga União Soviética e do seu império comunista governado a partir de Moscovo. Curiosamente quer à esquerda, quer à direita, e por razões diferentes e antagónicas, não se esquece igualmente que Putin fez a sua carreira profissional durante dezenas de anos ao serviço do KGB, pelo que a sua actuação política como presidente da Rússia reflectirá isso mesmo.

Em conversa com amigo assumidamente de esquerda, ao notar-se as incongruências do PCP, foi referida a ideia de que os partidos comunistas podem ter essa designação, mas desde a revolução russa que não passam de partidos que defendem e praticam capitalismo de estado, não tendo na verdade nada a ver com o comunismo que será, apenas, uma utopia. E “utopia” foi um termo inventado por Sir Thomas More no século XVI, para designar a sua ilha ideal, significando “lugar que não existe”. Utopia passou, a partir daí, a designar sociedades perfeitas, na verdade um conceito conhecido na História da Humanidade pelo menos desde Platão e a sua «República». 


Em 1922, há precisamente cem anos, Lewis Mumford em “A História das Utopias” seriou e analisou as utopias históricas precisamente desde Platão até Edward Bellamy, passando obviamente por Thomas More e pelos heréticos medievais. E é possível ver como as utopias deram tantas vezes origem às maiores tragédias, sempre em nome de grandes ideais que na realidade nada tinham a ver com a condição humana, como aconteceu com os cátaros, as mais diversas guerras ditas religiosas como as Cruzadas, ou mesmo a Revolução Francesa que permitiu o liberalismo, mas depressa conduziu ao Império de Napoleão.

Mas a grande utopia desenvolveu-se no século XX e continua a marcar este século XXI, apesar de baseada em filósofos do século XIX. Enquanto o liberalismo e a sua teoria económica designada por capitalismo surge perante tantos, não como um ideal a prosseguir mas como um mal origem de outros ainda maiores, o comunismo continua a servir de farol como a perfeição da organização humana. Isto apesar de as chamadas sociedades do «socialismo real» terem todas, sem excepção, desembocado em ditaduras de partido único, com toda a actividade pré-definida e controlada pelo estado dominado pelo partido único, quer se chamasse comunista ou mais prosaicamente apenas socialista. Na realidade, se as pessoas devem nascer todas iguais em direitos, são todas diferentes e únicas nos seus desejos e ambições, o que choca de frente com a existência de um Estado que tudo sabe, tudo orienta e tudo decide.


As reacções comunistas à invasão russa da Ucrânia inserem-se nesta opção política mais parecida com fé religiosa que, nos dias de hoje, se encontra circunscrita já não à construção da sociedade comunista ideal que se provou ser uma utopia, mas à oposição a tudo o que tenha a ver com a sociedade liberal e as suas organizações, sejam sociais, económicas ou mesmo, ou sobretudo, de defesa militar comum. Precisamente tudo o que esteve na base da derrocada da União Soviética e do seu Pacto de Varsóvia, setenta anos depois da Revolução Russa. E, nesta perspectiva de que os inimigos dos nossos inimigos nossos amigos são, o regime de Putin passa a ser amigo por ser inimigo de tudo o que a chamada civilização ocidental representa, ainda que não passe de um regime de capitalismo selvagem ultra-nacionalista de oligarcas chefiado pelo oligarca número um.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 de Março de 2022

Fotos recolhidas na internet

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