segunda-feira, 11 de abril de 2022

A MÃO DE IRYNA


Bucha. Nome de uma pequena cidade de que nunca tínhamos ouvido falar, mas que nunca mais nos sairá da memória. Tal como Oradour-sur-Glane, pequena aldeia francesa que entrou na História pelo massacre de mais de 600 homens, mulheres e crianças que os nazis ali perpetraram em 10 de Junho de 1944.

Também em Bucha não foi um ou outro soldado russo transviado que praticou crimes de guerra. Tratou-se de uma acção sistemática contra civis levada a cabo durante semanas pela unidade militar que tomou a cidade e ali se instalou violentamente nas casas dos seus habitantes, destruindo, pilhando, violando e assassinando. Sim, assassinando, porque não há outro termo para o acto de matar a tiro quem tentava fugir de carro, ou mesmo quem passava nas ruas de bicicleta. Sabe-se agora que uma mulher de 52 anos, moradora de Bucha, queria estar «mais bonita e elegante», e tencionava ir a um concerto da cantora pop Olya Polyakova pelo que em Fevereiro começou a ter aulas de maquilhagem. Claro que não foi a concerto nenhum, porque os russos invadiram a Ucrânia em 24 de Fevereiro, acabando com as vidas normais de milhões de pessoas que apenas queriam viver em paz num país que pudesse escolher o seu próprio destino dentro de uma Europa livre e democrática.

E Iryna, uma mulher simples e esperançosa no futuro, mãe de uma filha, acabou assassinada pelos tiros de uma arma militar russa em 5 de Março, quando regressava a casa na sua bicicleta, depois do trabalho. 


O seu corpo trespassado pelas balas e abandonado na rua durante semanas pelo medo foi imediatamente reconhecido pela sua professora de maquilhagem quando viu a mão com as unhas pintadas de vermelho e um coração num dos dedos, depois da partida dos russos. A fotografia da mão assim caída no chão correu mundo e tornou-se um símbolo da barbárie em que se tornou a «operação militar especial» de Putin na Ucrânia. Depois de se saber do sucedido em Bucha, mais situações idênticas foram sendo conhecidas em outras cidades nos arredores de Kiev, como em Chernihiv ou Makariv, o que obriga a uma abordagem destas acções do exército russo como sistemáticas e não pontuais.

Para alguns, trata-se de algo que é normal acontecer nas guerras, onde não há bons nem maus e todos praticam atrocidades, assim se desculpabilizando, na prática, os que as praticam. A recordação que fiz acima de Oradour-sur-Glane não é, pois, inocente. Na realidade, há semelhanças perturbantes na acção dos exércitos nestes casos, cumprindo ordens superiores, que revelam a mais completa amoralidade de ordenantes e executantes.


O lançamento de mísseis sobre a estação de comboios de Kramatorsk onde, desde o dia anterior, milhares de ucranianos se juntavam para fugir de um previsível grande ataque russo provocou dezenas de mortos civis, na maioria mulheres e crianças. Tratou-se de mais uma demonstração de uma mentalidade militar absolutamente inadmissível que deverá, mais cedo ou mais tarde, ser objecto de criminalização a nível internacional com o castigo dos responsáveis como criminosos de guerra.

Perante a invasão russa que levou a guerra a praticamente todo o seu território, a população ucraniana tem dado provas de uma resistência impressionante, não cedendo um centímetro aos invasores. E o mundo ocidental mostra o seu apoio à Ucrânia, dentro dos limites possíveis, atendendo à permanente ameaça nuclear russa. É assim que o presidente ucraniano Zelensky tem falado e explicado o que se passa no seu país em numerosas assembleias. Também no nosso país a Assembleia da República aprovou um convite ao presidente Zelensky para falar numa sessão especial. A decisão contou com a abstenção do BE e o voto contra do PCP, que são evidentemente livres de escolher o lado em que estão, embora as justificações para os seus votos sejam também evidentemente criticáveis e mesmo inaceitáveis por colocarem a Ucrânia que foi invadida e a Rússia que invadiu, num mesmo patamar de responsabilidade.

A este propósito, relembro aqui a «Cantata da Paz» de Sophia de Mello Breyner Andresen:

“Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror”

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 11 de Abril de 2022

Imagens recolhidas na internet 

 

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