segunda-feira, 2 de maio de 2022

A tragédia de viver em guerra

 


Até ao passado dia 24 de Fevereiro a vida decorria na Ucrânia como em qualquer outro país, em normalidade pacífica, tal como todos nós felizmente a conhecemos. Os problemas da população ucraniana tinham a ver com o crescimento económico, mas também sobre como pagar mensalmente as contas da casa, como ter emprego, como levar as crianças à escola ou como ir ao hospital tratar das doenças, pagar as multas do carro, etc. As pessoas morriam por doença ou por velhice e amavam-se e casavam ou divorciavam-se, se fosse caso disso, e emigravam livremente para outros países, claro que países europeus com melhores condições económicas como é o caso do nosso país, onde recebemos muitos ucranianos nos últimos anos. O modo de vida dos ucranianos era basicamente muito semelhante ao nosso, em toda a Europa ocidental, havendo até eleições em que os extremistas, que os há lá como em todo o lado, obtinham resultados perfeitamente irrelevantes. O desejo da Ucrânia, como país, era também vir a pertencer à União Europeia.

Até ao passado dia 24 de Fevereiro.

Nesse dia o inferno entrou pelas portas dos ucranianos adentro. A invasão russa determinada por Putin destruiu de forma quase instantânea essa vida normal. Já escrevi noutras crónicas sobre os motivos desta guerra iniciada pelo presidente russo e sua clique político-militar e sobre as consequências que já está a provocar em todo o mundo, quer militar, quer política e economicamente, de que todos já estamos a sofrer e que, na realidade, evoluem diariamente. Hoje tento apenas chamar a atenção para o que uma guerra provoca num povo que até aí vivia normalmente, em paz.


Todos vemos na televisão as casas destruídas, prédios esventrados, incluindo escolas, maternidades e hospitais e bairros inteiros transformados em pó. Mais cedo ou mais tarde tudo isso vai acabar por ser recuperado, embora com sacrifício. Mas as vidas das pessoas que lá viviam, que lá tinham as suas famílias, essas estão destruídas para sempre. Muitas delas, literalmente, porque os mortos civis são aos milhares, um pouco por todo o país. Muitas delas mortas dentro das suas casas bombardeadas e outras assassinadas nas ruas quando tentavam fugir da guerra com as famílias nos seus carros ou mesmo quando pacificamente circulavam de bicicleta. Já morreram centenas de crianças nesta invasão sem qualquer respeito por direitos humanos e convenções internacionais, como não há memória de outra tão bárbara na Europa. A mortandade é tão grande que, para além dos assassinos russos tentando esconder a sua barbárie, também sobreviventes ucranianos tiveram que enterrar os seus conterrâneos em valas comuns por falta de condições para enterros decentes.


Mas as vidas dos sobreviventes também dificilmente serão as mesmas. Muitas mulheres e raparigas jovens foram violadas por soldados russos, por vezes de forma colectiva, fazendo recordar o que se passou em Berlim em 1945 aquando da chegada do exército vermelho. Poderão não o dizer mas nunca mais esquecerão estes dias trágicos. Muitos dos que sobreviveram até hoje fizeram-no escondendo-se em abrigos e nas caves de edifícios. Semanas a fio na escuridão sem protecção para o frio, sem electricidade nem água canalizada, com a pouca comida aquecida em fogueiras como na idade da pedra.

Tudo isto para além dos mais de cinco milhões de refugiados situação que a Europa não via desde a Segunda Grande Guerra e ainda dos milhões que tiveram que deixar as suas casas, embora sem saírem do país.

A guerra muda tudo e deixa marcas para sempre. E as maiores são nas pessoas que sobrevivem. As memórias dolorosas não desaparecem, tal como as próprias relações entre os povos dantes irmãos serão gravemente afectadas, ainda que os responsáveis pelas guerras sejam os dirigentes políticos do momento e não os simples cidadãos cujo maior desejo é viver em paz.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Maio de 2022

Imagens recolhidas na internet

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