segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Saudades do Império e da Guerra Fria

 


O cenário parecia perfeito para os objectivos pretendidos por Putin e estava preparado há meses. Foi em Samarcanda, no Uzebequistão que, na semana passada, decorreu a 22ª cimeira do Conselho dos Líderes dos Estados-Membros da Organização de Cooperação de Xangai (OCS). Recordo que a OCS foi fundada em 2001 por seis países asiáticos: Rússia, China, Cazaquistão, Quirquistão, Tajiquistão e Uzbequistão. Em 2017 juntaram-se-lhes a Índia e o Paquistão e, em 2021, o Irão. Entre os países membros, encontram-se dois que fazem parte do Conselho de Segurança da ONU e quatro deles são potências nucleares, se não incluirmos o Irão que, se não o é, deverá sê-lo em pouco tempo. Três deles encontram-se entre os cinco países mais populosos do mundo, sendo mesmo dois deles, a China e a Índia, os dois países do mundo com maior população. A China é a segunda maior economia do mundo e a Índia o quinto. Trata-se, portanto, embora ainda não o tenha actualmente, de uma organização com um potencial enorme para ter um papel decisivo nos destinos do mundo.

Mas Putin não regressou da Samarcanda com o que pretendia. Desde logo porque o próprio Putin não foi para a cimeira com o espírito que desejaria. A sua necessidade de força e consequente agressividade estavam claramente prejudicadas pela situação da invasão da Ucrânia nas duas últimas semanas. O contra-ataque das forças ucranianas levou a que as forças russas abandonassem dezenas de povoações, com Kharkiv à cabeça. A saída dos exércitos russos ter-se-á verificado de uma forma que mais terá parecido uma debandada, uma afronta para Putin que de imediato procedeu a novas substituições ao mais alto nível do comando das forças invasoras. E foi assim que Putin ouviu do líder indiano o que não queria. De facto, Narenda Modi disse ao líder russo que «este não é o momento para uma guerra», ao que Putin respondeu querer acabar a guerra «o mais depressa possível», acrescentando que «entende as suas preocupações» sobre a questão da Ucrânia. Já no que diz respeito à China, Putin começou por manifestar o apoio russo à política «uma China», isto é, à integração de Taiwan na China continental e continuando, disse valorizar muito a posição equilibrada dos nossos amigos chineses em relação à crise na Ucrânia». Já o presidente comunista chinês Xi Jinping declarou que «a China vai trabalhar com a Rússia para dar estabilidade e energia positiva a um mundo caótico». E aqui reside o essencial do apoio chinês às opções políticas e visão do mundo de Putin para quem tudo o que é ocidental é decadente e estará em declínio, incluindo todos os avanços civilizacionais que conhecemos como os direitos humanos, liberdades individuais e mesmo convenções internacionais.


Mas Putin está redondamente enganado quando imagina liderar ou pelo menos dirigir em parceria estratégica com a China um novo pólo asiático que se oporá ao tal Ocidente que abomina. Embora a Rússia seja o maior país do mundo, ocupando dez fusos horários, pelo seu lado a China é o país mais populoso do mundo, tem um histórico de relações difíceis com a Rússia e é já neste momento a segunda maior economia do mundo, dez vezes maior do que a russa. O famoso abraço do urso que, mais cedo ou mais tarde irá dar-se, será aqui exactamente ao contrário do que habitualmente se refere. Apesar dos seus apelos à História russa para justificar a necessidade da reconstituição do Império que já se vestiu de czarista e comunista, Putin esquece o acordo entre a URSS e a Alemanha nazi, o famoso Pacto Molotov-Ribbentrop, que acabou naquilo que todos conhecemos.

Coincidência, ou não, na mesma semana a Rússia abandonou a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, enquanto Putin acusa a Comissão Europeia de «egoísmo».


Já no «campo de batalha», como Putin chamou à Ucrânia, foram novamente descobertos centenas de corpos de pessoas chacinadas e enterradas em valas comuns pela tropa invasora russa, depois da debandada desta de Izium, à semelhança do que tem acontecido noutros locais como a tristemente famosa Bucha. Corpos cujas condições indiciam de novo a prática de tortura e assassínios de militares, mas também de civis ucranianos, incluindo mesmo crianças.

O chamado Ocidente está debaixo de fogo na Ucrânia e bem faz em apoiar este país nos seus desejos de se virar para a Europa comunitária, ajudando-o o mais possível na sua defesa contra o invasor russo. Ainda que isso signifique sacrifícios, como se está a verificar. Putin tem o sonho de reconstituir o antigo império soviético e de voltar a colocar o mundo sob a chantagem nuclear. As democracias devem perceber isso e unir-se para evitar que tal aconteça.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de Setembro de 2022

Imagens recolhidas na internet

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