Temos assistido recentemente a fenómenos de alterações sociais que, por se darem de forma gradual e não instantânea como as revoluções, nem por isso deixam de ser profundas e de, mais cedo ou mais tarde, se manifestarem com uma força que não se imaginaria possível.
As políticas educativas dos últimos anos têm tido consequências à primeira vista imprevisíveis, dado que os seus responsáveis estão sempre a defender a escola pública. Na realidade, as lutas dos professores têm trazido à tona situações laborais insustentáveis pela sua profundidade e duração. Como consequência, a desmotivação dessa classe profissional, com um papel crucial em qualquer sociedade desenvolvida, é uma evidência e acarreta problemas graves no que verdadeiramente importa em qualquer sistema educativo, que é a formação dos alunos. A burocratização da função educativa, bem como a permanente desautorização dos professores diminuem-lhes gravemente a capacidade de ensino, transformando-os em funcionários de um sistema desumanizado permanentemente em conflito. Quem sofre mais são os alunos mais carenciados, que vêem o sistema ser cada vez menos uma escada de ascensão social, potenciando o crescimento das desigualdades, sempre injustas. O fim dos contratos de associação veio ajudar, eliminando a possibilidade de alunos com menos posses acederem a um ensino diferenciado e de qualidade. Só para dar um exemplo, aqui ao lado em Espanha, como em muitos outros países europeus, os contratos de associação mantêm-se, mesmo com governos muito à esquerda. Se havia exageros ou incumprimentos, isso resolvia-se com a Justiça, sem deitar a água fora com o bebé, puramente por motivos ideológicos. Todos sabemos dos defeitos dos rankings escolares que têm dificuldade em integrar os problemas sociais locais. Mas há uma evidência que ressalta deles e de que é impossível fugir, por mais defeitos que tenham: a variação ao longo dos últimos anos que consiste na descida sistemática e contínua das escolas públicas dos lugares cimeiros. Nas primeiras quarenta escolas não aparece uma única pública! Lembram-se de que há uns anos a Escola Secundária D. Maria aqui em Coimbra era sistematicamente uma das primeiras? Onde já vai esse tempo. Como resultado disto tudo, os colégios privados nascem e desenvolvem-se sem mãos a medir, com milhares de pais a fazerem sacrifícios enormes para poderem pagar as propinas, preocupados com o futuro dos seus filhos.
Tal como tem vindo a acontecer no Serviço Nacional de Saúde. Da falta de médicos de família às maternidades, passando pelos atrasos nas consultas e cirurgias, parece não haver maneira de resolver os problemas gravíssimos do SNS. E não é certamente por falta de dinheiro, mas por incompetência e incapacidade política de fazer reformas. Nomear uns gestores nacionais para o SNS pode resolver uns problemas pontuais e ir iludindo o inevitável, mas quem tem a responsabilidade última é o Governo. E não estou a esquecer as ilhas de excelência do SNS, que as tem, nem a importância e significado do SNS para os portugueses em geral. Mas o acesso rápido e universal à prestação dos serviços é essencial para a sua eficácia. Também no SNS se assiste à fuga por parte de quem tem possibilidade financeira para o fazer, mesmo com grandes sacrifícios; a crescente subscrição de seguros privados de saúde, que já se conta por vários milhões, bem como a proliferação de hospitais privados é a prova disso mesmo. E como é que se compreende que o Governo tenha acabado com Parcerias Publico Privadas que saíam mais baratas ao Estado e prestavam cuidados de saúde de mais qualidade do que acontece actualmente com gestão pública, como é publico e notório, por exemplo, em Braga e em Loures?
A pressão ideológica colocada pelo Governo sobre estas áreas de governação tem como efeito um reequilíbrio praticado pelos cidadãos que ao passarem para os serviços oferecidos pelos sectores privados, embora à sua própria custa, estão também a baixar a pressão sobre os serviços estatais. Até poderia ser positivo se isso significasse uma descida da despesa estatal, mas incompreensivelmente tal não acontece. O que faz dos portugueses dos cidadãos que mais despesa têm com cuidados de saúde na Europa. Mas a resiliência da nossa sociedade perante a pressão estatal é que se torna verdadeiramente impressionante.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 Junho 2023
Imagens recolhidas na internet
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