Acredito que não será certamente por causa da politização do evento que o chamado Festival da Eurovisão 2024 ficará na memória dos telespectadores. Na realidade, há muitos anos que é visível a penetração da política na organização ou nas candidaturas dos países, de que até Portugal já foi disso exemplo no passado, por mais de uma vez. O activismo político utiliza todos os meios que pode e, quando a organização de um evento de grande escala não tem capacidade de se opor, aproveita a oportunidade. Claro que correu mal porque um dos intérpretes abusou e foi o seu país que acabou por se ver excluído da competição. A mistura da defesa dos palestinianos com o racismo anti-semita acabou por se virar contra os próprios, porque as votações directas permitiram perceber que o extremismo vanguardista que ocupa as televisões anda muito longe do sentir das populações anónimas.
Também não será por causa da afirmação pessoal de intérpretes que aproveitam para assumir a sua diferença no que diz respeito à sexualidade que este festival ficará na memória. De facto, já não podemos classificar como grande novidade o surgimento de intérpretes que se apresentam, mais do que cantores, como pessoas não binárias. O aceitamento pacífico da diferença generalizou-se nas nossas sociedades e os exageros de afirmação apenas atraem a atenção e atitudes opostas de minorias extremistas do lado contrário, no fundo bastante parecidas nos métodos.
Também não será a extravagância das indumentárias apresentadas pelos intérpretes (homens, mulheres, etc.) que este certame ficará na memória. A utilização de vestuários diferentes tem sido uma característica dos Festivais da Eurovisão desde há muito. A maioritária apresentação de intérpretes femininas em minúsculos trajes do tipo fato de banho é apenas mais uma demonstração da hipocrisia reinante em determinados círculos. Não foi há muito tempo que as feministas se insurgiram contra os concursos de misses em fato de banho e conseguiram que no início das corridas de automóveis e motas não houvesse jovens assim vestidas. E muito bem, digo eu, só se torna difícil de entender o actual silêncio perante idênticas utilizações do corpo feminino.
Este festival também não passará para a História pelos cenários de luz cor e movimento com utilização intensa de efeitos digitais que, apesar da sua espectacularidade, é já habitual em muitos eventos musicais que se realizam por esse mundo fora.
Mas a verdade é que este Festival da Eurovisão deverá mesmo ficará na nossa memória, embora por outras razões, que nos levam a perceber um pouco melhor as circunstâncias que acima refiro. É que, sendo suposto ser um festival de música, a musicalidade não poderia andar mais longe daquele palco europeu. Conta-se que Louis Armstrong costumava dizer que só há dois tipos de música: a boa e a má. Claro que a classificação depende de critérios pessoais, mas há níveis de qualidade tão baixos, tão baixos, que se torna possível uma concordância generalizada. Será, para muitos em que me incluo, o caso deste dito festival de música que não foi mais do que um festival de gritaria. E os cenários espectaculares, as indumentárias ridículas e as afirmações pessoais laterais não servem para mais do que isto: esconder que em vez de um Festival de Música, a Eurovisão nos presenteou apenas com um Festival de Gritaria. Ainda que de carácter popular, houve tempo em que o Festival da Eurovisão era Cultura. Hoje está transformado em mero entretenimento grosseiro, acompanhando a luta comum que interesses comerciais e vanguardas políticas e sociais de braços dados têm promovido contra o Belo e Sensível.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Maio de 2024
Imagens recolhidas na internet
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