quinta-feira, 27 de março de 2025

Comissões de Inquérito

 A recente crise política que desembocou na dissolução da Assembleia da República e consequente marcação de eleições legislativas no próximo dia 18 de Maio revestiu-se de características próprias com pormenores que, a meu ver, não têm merecido a devida atenção. A sequência vertiginosa da reprovação de duas moções de rejeição a que se seguiu idêntico destino dado a uma moção de confiança apresentada pelo Governo foi de molde a suscitar a atenção generalizada encobrindo outros aspectos da crise cuja importância não foi, assim, devidamente discutida.

Todos estamos recordados de que a crise se iniciou com a chamada “lei dos solos” e a eventual vantagem que uma empresa familiar do Primeiro-Ministro poderia retirar da sua aplicação. Luís Montenegro lá se explicou relativamente a este aspecto específico, mas cometeu um erro fatal: deixou na sombra a principal actividade da empresa e, erro crasso, a forma como entregou à família a sua quota pessoal na empresa. A partir daí foi um descobrir praticamente diário de pormenores sobre a actividade da empresa que, aliás, e espantosamente, ainda continua.

No dia da discussão da Moção de Confiança a maioria dos portugueses terá ficado chocada, com o espectáculo da negociação para português ver (e acreditar se quiser) entre a retirada da Moção e colocação de prazos para o trabalho de uma Comissão de Inquérito ao Primeiro-Ministro a propor pelo PS.

De acordo com a Lei, “As comissões de inquérito são comissões eventuais que obedecem a um regime específico e que têm como missão vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração”. Ora, na verdade, não se vê aqui como uma Comissão de Inquérito da AR se poderá, consequentemente, debruçar-se sobre a questão da empresa da família do Primeiro-Ministro. Há algum acto concreto do Primeiro-Ministro, do Governo ou da Administração a analisar no que respeita a esta questão? Que se saiba, nenhum. Veja-se as Comissões de Inquérito desta legislatura: Caso das duas gémeas brasileiras, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e Tutela Política da Gestão da Efacec. Todas elas se referem a actos concretos do Governo e Administração.

As Comissões de Inquérito da AR estão notoriamente a ser transformadas em palco de luta partidária e a perder a credibilidade e dignidade que são devidas à Assembleia da República. O que se passou nestes dias com as conclusões da chamada Comissão da Gémeas brasileiras ultrapassou todos os limites da decência e da normalidade na casa que é a da Democracia. A Deputada encarregada de elaborar o relatório da Comissão partidarizou o mesmo ao apresentá-lo publicamente com o presidente do seu partido. Para depois essa proposta de relatório reprovada pelos representantes de todos os outros partidos, tendo sido designado outro relator para apresentar outro relatório que se suspeita ter integrado as defesas e posições das individualidades visadas durante o inquérito.

Na realidade, as Comissões Eventuais de Inquérito estão desacreditadas perante a opinião pública, pela forma como têm sido encaradas pelos diversos partidos que não resistem em utilizá-las como uma nova forma de ataque político aos adversários, enquanto pretendem dar a ideia de uma espécie de “tribunal” independente e justo. A fiscalização da actuação dos Governos é uma atribuição fundamental da Assembleia da República, dentro da organização democrática da separação de poderes. Querer transformar os meios dessa fiscalização em palco para a luta partidária pode parecer muito conveniente a curto prazo mas, a longo prazo, mina irremediavelmente a confiança dos cidadãos no regime e suas instituições fundamentais. Além de, no futuro, se virar inevitavelmente contra os que assim procedem.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Março de 2025

 

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