segunda-feira, 17 de junho de 2013

1984 em 2013

A queda do muro de Berlim em Novembro de 1989 sinalizou o fim dos regimes comunistas e da Guerra Fria que, desde o fim da II Grande Guerra em 1945, manteve a sorte do mundo num fio da navalha.
Acabava também um mundo bi-polar em que duas grandes potências disputavam a supremacia militar, mas também económica e política. Foi aliás a evolução económica do bloco ocidental que não parou de crescer desde os anos cinquenta de forma exponencial a ditar aquele resultado, por exaustão do bloco de Leste que orientava todas as suas energias para a manutenção do equilíbrio militar, o que a certa altura se tornou manifestamente impossível.
O mundo acordou subitamente diferente, sem a ameaça permanente de um conflito militar global, mas com uma única superpotência. Não passaram muitos anos sem que novas ameaças surgissem.
Em Setembro de 2001 os Estados Unidos foram feridos no seu orgulho de líderes quando o seu território foi pela primeira vez na História palco de um autêntico acto de guerra. A reacção brutal e violenta que se seguiu e que se assemelhou à resposta de um grande animal mordido no pé não causou surpresa, a não ser pela falta de objectividade e até de eficácia, estando ainda hoje o Afeganistão e o Iraque em situação de guerra latente na sequência das intervenções americanas.
Em 2008 surgiu finalmente uma crise económica e financeira a nível global diferente de todas as anteriores, quer pela sua intensidade, quer pela duração. É hoje reconhecido que a finança mundial se aventurou por caminhos antes impensáveis, com consequências desastrosas no mundo económico através da formação de bolhas especulativas que rebentaram nas mãos de quem menos supunha que existissem sequer.
Muitos países se deixaram ir igualmente no canto da sereia e endividaram-se de tal forma que entregaram a própria soberania para tentarem segurar-se num mundo cujas regras são hoje ditadas pelos mercados globais.
Mas outra consequência do fim da Guerra Fria se foi desenvolvendo de forma larvar, tendo surgido há poucos dias à luz do dia de forma impressionante, embora se pense que é apenas a ponta do iceberg. Se até 1989 os diversos Serviços Secretos desenvolviam a sua actividade de uma forma controlada, pelo equilíbrio de forças e a existência de “regras” assumidas, como aliás John Le Carré bem descreveu nos seus livros, o desaparecimento de um dos lados deixou à solta o que ficou sozinho. O seu adversário passou a ser o mundo inteiro, como se sabe agora com a divulgação na imprensa da acção da NSA, agência de segurança nacional americana.
Basicamente, os cidadãos de todo o mundo passaram a ser objecto de espionagem sistemática por parte dos americanos. Eu, o leitor e toda a gente que o leitor conhece e não conhece temos actualmente as chamadas telefónicas por telemóvel, por skype, VOIP, etc., as mensagens electrónicas (mail), as conversas e mensagens nas redes sociais, fotografias e tudo o mais que possa imaginar vasculhadas sistematicamente pelos serviço secretos americanos. Para cúmulo, a NSA nem faz todo o trabalho sozinha, por manifesta dificuldade tecnológica, contratando para esse serviço diversas empresas privadas, como as de telecomunicações.
Estamos em 2013 e não em 1984 e temos que reconhecer com tristeza que o único erro de George Orwell foi de data e não de substância.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Junho de 2013

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Cidade virada ao futuro



A afirmação de que a competição internacional se faz hoje em dia pelas cidades tornou-se um lugar-comum, pela sua evidência. Muito mais num espaço económico aberto como é a Europa. Se tal é evidente, já não o é tanto o caminho para que uma cidade média localizada num país periférico, como é o caso de Coimbra, consiga ser competitiva a nível internacional.
Mas há caminhos para lá chegar. Um deles passa pela utilização da sua identidade que, no caso da nossa Cidade, é fortíssima e deve ser assumida sem complexos e com a maior confiança e intensidade. Essa identidade advém de uma História antiquíssima, que vem de antes da própria Nacionalidade e que é suficientemente conhecida até aos tempos da cultura moçárabe e do célebre D. Sesnando. A História de Coimbra é um património imaterial que pode e deve enformar toda a acção para a afirmação da nossa Cidade.
O Turismo é a atividade económica mais óbvia que decorre da utilização da História como vantagem comparativa. Mas não se pode ficar por uma recepção simpática dos estrangeiros que nos visitam. Aliar a Cultura ao Turismo é essencial e tal ainda não foi feito entre nós, não se percebendo como uma Autarquia moderna não coloca essas duas preocupações no mesmo pelouro. O turismo cultural é hoje uma actividade económica em expansão em toda a Europa, onde as férias prolongadas praticamente estão em extinção substituídas por viagens de curta/média duração muito mais abertas a um conhecimento aprofundado dos locais que se visitam.
A recuperação dos Centros Históricos é outra pedra de toque na afirmação da identidade das Cidades competitivas. Coimbra está finalmente no bom caminho, através da aprovação dos programas estratégicos das suas áreas de reabilitação urbana e da mais que provável aprovação da candidatura a património mundial reconhecido pela Unesco. Assim os responsáveis autárquicos e universitários o assumam por completo, o que inclui a assunção das verbas previstas para os próximos quinze anos e uma colaboração eficaz sem complexos nem guerrinhas de protagonismos balofos.
A “venda” internacional de Coimbra deve abranger ainda o recente e muito significativo surto de aparecimento e desenvolvimento de empresas de base tecnológica com grande sucesso, saídas da Universidade. Portugal dispõe hoje em dia de um instrumento poderoso e muito competente de atracção de investimentos estrangeiros e de apoio da nossa economia lá fora, que é o AICEP. Uma Cidade como Coimbra não pode deixar de usar e abusar dessa ferramenta, tal como o fazem as empresas para se internacionalizarem.
Coimbra está à porta de um futuro brilhante. Assim os responsáveis dos partidos políticos o percebam e sejam capazes de entrar por essa porta porque, para o bem e para o mal, é por eles que em democracia passam essas opções.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Junho de 2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Coimbra no seu melhor (de novo)


Se mais uma vez utilizo este título nesta minha crónica: “Coimbra no seu melhor”, é por ter boas razões para o fazer. Na realidade, a nossa Cidade tem uma característica bem portuguesa, que por razões históricas é mais pronunciada entre nós e que se revela numa intensa capacidade de dizer mal de tudo e de todos. Concedo até que essa atitude se deva a uma vontade subliminar de ouvir em resposta que não, que em Coimbra até há isto ou aquilo de bom. Mas, aqui entre nós, essa é uma atitude bem “coimbrinha” que deve ser combatida, porque desvirtua a realidade actual da nossa Cidade. E, para dificuldades, já nos chegam as provocadas pelo bicefalismo territorial do país, que esmaga a zona Centro em que nos integramos e de que Coimbra é claramente a cidade principal.
Por estas razões, o exercício activo da cidadania obriga-me a mostrar e divulgar aquilo que sinto ser o que Coimbra tem de melhor para oferecer. E não haverá textos que me dêem mais prazer escrever do que estes.
Venho hoje referir, de novo, a excelente Orquestra Clássica do Centro. Vou repetir-me em parte, porque já aqui elogiei o trabalho de todos os que dão corpo àquele projecto que deve ser acarinhado por todos.
A existência continuada em Coimbra de uma formação orquestral de música clássica de qualidade indiscutível foi um sonho de muitos ao longo de muitos anos. É hoje uma realidade incontestável, afirmando-se com uma qualidade reconhecida, apesar das dificuldades financeiras de sempre.
Tendo a honra de pertencer ao seu Conselho Cultural, partilho aquilo que o Eng. Gonçalo Quadros que preside a este Conselho escreveu: “A Cultura é alimento essencial para uma sociedade que se quer assente em conhecimento (…) a nossa região terá dificuldade em construir conhecimento, em desenvolver uma sociedade e uma economia nele baseada sem uma aposta continuada que permita desenvolver um contexto cultural rico e estimulante-que é também cultura.”
O protocolo recentemente assinado pela OCC com a EFAPEL é uma prova de também as empresas vêem na Orquestra Clássica do Centro um meio de se prestigiarem por se associarem a actividades culturais de qualidade.
Estes protocolos celebrados pela OCC com diversas entidades não são letra morta, pelo contrário têm dado origem às mais diversas iniciativas como, por exemplo a iniciativa que na próxima quarta feira, dia 5 de Junho, terá lugar no Café Santa Cruz, resultado da parceria da OCC com aquele Café emblemático da nossa Cidade que este celebra os noventa anos da sua existência. Aí teremos a oportunidade de poder falar sobe a “(Re)Construção da Cidade com Manuel Castelo Branco, Cândida Almeida, José Mário Martins e Marcelo Nuno Pereira e ouvir uma interpretação do Bolero de Ravel pelo Quarteto de cordas da OCC.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Junho de 2013

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Modernidade centenária

Faz esta semana cem anos que a Sagração da Primavera foi apresentada ao público pela primeira vez. Na noite de 29 de Maio de 1913, o Teatro dos Campos Elísios em Paris foi palco de um acontecimento que ficaria nos anais da música. A obra de Stravinsky, dirigida por Pierre Monteux, com os Ballets Russos de Diaghilev e a coreografia de Nijinski fez a sua entrada estrondosa na História da Música, provocando um autêntico tumulto entre a assistência que, da forma mais ruidosa possível, manifestou o seu espanto e desagrado perante o que ouvia e observava.
Neste nosso tempo em que podemos visitar todo o passado cultural, em que toda a informação está ao nosso dispor através de uma tecla do computador, é difícil imaginar uma sala a reagir daquela forma à apresentação de uma nova obra musical que dura cerca de meia hora, não mais. Mas estamos também a viver uma época em que o simples facto de uma estreia juntar três vultos da Cultura da dimensão de Stravinsky, Nijinski e Diaghilev é algo de verdadeiramente extraordinário, já que hoje a novidade se cinge cada vez mais ao que sucede na economia e nas finanças e o reconhecimento das próprias obras de arte dificilmente se eleva do seu valor monetário.
Stravinsky foi buscar inspiração às velhas histórias russas pagãs e criou uma obra que não é apenas um ballet, nem um concerto, mas algo que é isso tudo em simultâneo e que, acima de tudo constitui uma experiência inesquecível para todos os que com ela contactam pela primeira vez.
Apesar do escândalo inicial, a Sagração da Primavera entrou no rol das músicas mais ouvidas e as suas apresentações têm-se sucedido por todo o mundo ao longo deste século, embora muitas das coreografias continuem a chocar espíritos menos preparados. Na sua Rússia natal, no entanto, Stravinsky só em 1965 viu o famoso Bolchoï integrar a Sagração da Primavera no seu repertório; o poder soviético só cinquenta anos depois da sua estreia permitiu ao povo russo conhecer a obra prima do seu conterrâneo.
Curiosamente, a obra foi divulgada pelo mundo inteiro por um meio imprevisível, o cinema animado para crianças. De facto, Walt Disney integrou a Sagração no fantástico filme Fantasia que desde 1939 inicia na música gerações e gerações de crianças, tornando-a assim familiar a milhões de pessoas.
Durante boa parte do século vinte discutiu-se o carácter intrinsecamente revolucionário da Sagração da Primavera. Composta num tempo em que os caminhos inovadores da música pareciam passar obrigatoriamente pela novidade da atonalidade, à composição de Stravinsky era negado esse carácter, por seguir a tonalidade, atribuindo-se a sua capacidade de chocar aos seus ritmos avassaladores que deixam os ouvintes sem respiração. Entretanto o tempo passou e, seja porque a formação musical não evoluiu o necessário, seja porque as manifestações artísticas necessitam de adesão afectiva das audiências, para além da pura contemplação racional, a música atonal praticamente saiu de cena e a Sagração da Primavera cá continua a impressionar pela sua modernidade, cem anos depois.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Maio de 2013