Confesso que não sei se o dito popular que
assegura trazer a idade sabedoria é verdadeiro, ou não. O que sei é que, à
medida que os anos avançam, muda muito a maneira como vemos o que se passa à
nossa volta. Dizia Ortega & Gasset que o homem é ele próprio e a sua
circunstância. Passe o relativismo desculpabilizante que, por vezes, possa
estar associado a tal afirmação, a verdade é que a experiência associada aos
anos de vida não pode deixar de influenciar a percepção do mundo e mesmo a
sensibilidade perante o que acontece.
Há um período na vida em que nos sentimos fortes,
em que parece que tudo o que fazemos sai bem e em que nos sentimos capazes de
mudar o mundo. Quando temos vinte e trinta anos as certezas dominam os nossos
pensamentos e as nossas crenças. Normalmente é por essa altura que temos os
nossos filhos e até mesmo esses acontecimentos notáveis nos surgem com
naturalidade, tal como o seu crescimento e desenvolvimento. Ao fim e ao cabo, o
acompanhamento dos filhos até ganharem asas e voarem por eles mesmos dura
algumas dezenas de anos de vida em comum, o que cria naturalmente a sensação de
que são uma extensão de nós próprios. Ouvi uma vez um cientista Físico dizer
que não vale a pena tentar inventar uma máquina do tempo, porque ela já existe:
são os nossos filhos, que nos projectam no futuro. Isto sensibiliza-nos ainda
mais para com o sofrimento dos pais que, contra o que é natural, veem os seus
filhos partir.
Mas a lei da vida acompanha o tempo que vai
passando e, a certa altura, eventualmente outro acontecimento notável nos
surge: o nascimento de netos. E damo-nos conta de algo para que ninguém nos
avisa e para que não estamos preparados pela experiência da vida.
O surgimento dos netos não depende rigorosamente
nada de nós, nem a sua vida nos estará nunca ligada como aconteceu com o seu
pai ou a sua mãe, nosso filho ou filha. E é assim que, quando seguramos esse
pequeno ser nos nossos braços, um estranho sentimento nos invade. A sua evidente
fragilidade e completa dependência impressionam e assustam mesmo. Quando os
nossos filhos, pais destes agora vindos nasceram eram perfeitamente
semelhantes, mas essa consciência não era tão vívida como agora surge perante
os netos. A circunstância da nossa idade quando somos pais e da perspectiva
perante a vida com tanto futuro à frente, parece facilitar a aceitação da
fragilidade e da evolução dos filhos e até aligeirar o eventual peso que trazem
às nossas próprias vidas. Perante os netos, a naturalidade que havia com os
filhos desaparece, surgindo em seu lugar uma clara percepção da vida e das suas
contingências. Não vamos ter a responsabilidade directa de os educar e transportar
até à sua idade adulta e não devemos sequer ceder à tentação de tentar fazê-lo.
Por outro lado, a consciência da nossa idade diz-nos que a maior parte da vida
daquele ser humano vai ser passada quando nós próprios já cá não estivermos, o
que nos faz imaginar como será o mundo nessa altura e, claro, ter algum receio
por isso mesmo.
Mas isso não significa uma menor sensação de
responsabilidade interior, nem uma falta de preocupação com o futuro. Na
realidade, é perante os netos que surge mais evidente a noção de elo entre
gerações.
Com os netos nos braços, lembramos com enorme clareza os nossos
próprios avós e, sobretudo, os nossos Pais, sobretudo se já desaparecidos. Com
os nossos filhos de entremeio. Vem à recordação a vida dura dos antepassados
nas faldas da Serra da Estrela, sem instrução, mas com enorme educação, como
ainda tivemos oportunidade de testemunhar. Recorda-se com carinho infinito os
Pais que tudo fizeram para que a minha geração tivesse educação, mas sobretudo
a formação escolar que a eles por uma ou outra razão foi vedada. E olhamos para
os netos, eles que são filhos de uma geração já com uma outra formação e uma
cultura muito superiores a nós próprios e sonhamos para eles um futuro ainda
melhor, com mais abertura ao desconhecido, com mais respeito pelo próximo e
mais possibilidades de escolha do seu próprio destino. Acima de tudo, esperamos
que o mundo em que vão viver seja mais justo e que nele sejam felizes, amados e
construtores, eles próprios, de um futuro melhor para os seus descendentes. Na
verdade, eles são o futuro, hoje.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Fevereiro de 2015