segunda-feira, 30 de março de 2015

Europa connosco



O nosso velho continente foi palco de inúmeras guerras ao longo dos séculos que seguiram ao desaparecimento do império romano. Umas devidas a invasões por outros povos ou civilizações, outras pelo estabelecimento das nações e respectivas fronteiras. Recordo, como mais conspícuas, as guerras conhecidas como dos sete, dos trinta e dos cem anos. No início do século XIX havia já alguma estabilização de fronteiras, mas a Revolução Francesa veio abanar a antiga ordem baseada nas tradicionais familias reinantes das casas reais. Na sua sequência, Napoleão quis unificar a Europa, através da sua conquista pela força dos seus exércitos. Não o conseguiu. Cem anos depois, a Europa viu-se de novo em guerra pelas velhas razões, naquela que ficou conhecida como I Guerra Mundial, que ditou o fim dos velhos impérios e estabeleceu uma nova ordem mundial. Não passou muito tempo até que uma segunda guerra mundial tivesse origem na Europa a partir da vontade de conquista da Europa pelo regime nazi alemão.
Depois da II Grande Guerra que acabou em 1945, os países da chamada Europa Ocidental decidiram encetar um caminho de cooperação que ultrapassasse definitivamente as velhas querelas europeias e criasse as condições para uma paz, enfim duradoura. Foi assim que, logo em 1949, as nações da Europa Ocidental criaram o “Conselho da Europa”, tendo em 1950 Robert Shuman apresentado um plano que veio, no ano seguinte, a concretizar-se no Tratado Comum, subscrito pelos seis países fundadores da Comunidade Europeia: Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos. De início, tratava-se apenas de colocar as indústrias pesadas do carvão e do aço desses países sob uma autoridade comum, assim se evitando que qualquer um deles pudesse fabricar armas contra outros membros da comunidade. 
O êxito desta iniciativa levou os seis países membros a aprofundar a sua cooperação económica, assinando em Março de 1957 o Tratado de Roma que criou a Comunidade Económica Europeia, conhecida como “mercado comum”, visando a livre circulação de pessoas, mercadorias e serviços entre os países membros. O sucesso da CEE levou a que outros países desejassem pertencer-lhe e daí, os sucessivos alargamentos. Em 1973 aderiram a Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido. Em 1981 aderiu a Grécia e em 1986 foi a vez da Espanha e de Portugal. Em 1995, entraram a Áustria, a Finlândia e a Suécia. Já no novo século entraram mais doze países, tendo a nova União Europeia passado a abranger boa parte da antiga Europa de Leste, tendo 27 Estados Membros e pedidos de mais 3 Estados para entrar.

Os sucessivos alargamentos levaram a um aprofundamento político da EU, que passou a ter um papel muito para além do puramente económico do seu início. Logo em 1979, os cidadãos europeus passaram a eleger directamente os deputados do Parlamento Europeu. Em 1986 foi assinado o Acto Único Europeu, com o objectivo de criar o “Mercado Único” concluído em 1993, ano do Tratado de Maastricht. Em 1999 foi assinado o Tratado de Amesterdão e abriu-se caminho aos acordos de Shengen que permitem aos europeus viajar dentro de toda a União sem necessidade de mostrar passaporte. Em 2009 entrou em vigor o Tratado de Lisboa que dotou a EU de instituições mais adaptadas às suas novas dimensões e competências. Em 1 de Janeiro de 2002 foi introduzido o Euro nos países aderentes à chamada Zona Euro. De referir que para entrarem na Zona Euro os países se comprometem a cumprir condições específicas relativamente a défices orçamentais e dívida pública.
Aquilo que a força das armas tentou impor por duas vezes em menos de cento e cinquenta anos foi conseguido pela cooperação pacífica entre as nações europeias, com o sucesso extraordinário de ainda conseguir paz nas fronteiras europeias durante um período record da História.
Claro que a construção da unidade europeia não tem sido fácil no seu já longo caminho. Desde o início que extremistas de ambos os lados do espectro político se lhe opõem com todas as forças. É verdade que tem havido países que mostram ter grande dificuldade em cumprir as regras, nomeadamente orçamentais, mas a solidariedade europeia não tem sido palavra vã. Claro que não se pode esperar que a maioria dos países que cumprem as regras aceites estejam dispostos a pagar eternamente pelos desvios de poucos. Por isso, esta União Europeia é democrática. Quem quiser sair, pode fazê-lo não correndo o perigo de sofrer uma invasão militar, como sucedia em outros pactos políticos há poucas dezenas de anos.
Aquilo que a União Europeia já conseguiu é demasiado valioso para todos os europeus, especialmente aqueles que, como Portugal, sofreram atrasos sociais, políticos e económicos durante séculos de afastamento da Europa. O que se pede, ou mesmo exige aos líderes políticos, é que pensem no futuro dos portugueses e se coloquem ao seu serviço, em vez de se preocuparem apenas com os seus ganhos particulares imediatos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Março 2015

segunda-feira, 23 de março de 2015

A espada de Dâmocles



Qualquer detentor de poder consciente deve saber duas coisas. A primeira é que a detenção de poder é efémera; a segunda é que não conhece o momento exacto em que o perderá. Não me refiro apenas àquele poder mais óbvio, que é o de governar, o poder político. Há muitas outras formas de deter ou exercer poder, seja na vida económica, seja na vida social, seja nas igrejas, seja na vida profissional, seja mesmo na vida política sem governar, no que respeita aos líderes de partidos na oposição.
Há uma velha história sobre os cuidados a ter no exercício do poder, que para alguns se transforma mesmo em incapacidade de o fazer convenientemente. Uns quatrocentos anos antes de Cristo, quando Siracusa na Sicília ainda não pertencia ao império romano e era uma cidade helénica, existiu aí um rei chamado Dionísio que vivia em grande fausto, rodeado de tudo o que havia de bom nesses tempos recuados. Um dos cortesãos, chamado Dâmocles, invejava as riquezas do rei e um dia disse-lhe o quanto gostaria de ter a sua vida que faria dele certamente o homem mais feliz à face da Terra. Para sua surpresa, Dionísio resolveu fazer-lhe a vontade e cedeu-lhe o trono por um dia, com tudo o que lhe estava inerente. Com a maior das satisfações, Dâmocles sentou-se na cadeira real e começou a desfrutar de tudo aquilo que lhe apetecia. Desde a comida ao vinho, à fruta e à música, tudo o que queria lhe era imediatamente trazido pela jovem criadagem ao seu serviço. A certa altura, porém, teve um estranho pressentimento e levantou os olhos para o tecto. Paralisado de medo, viu uma espada afiada pendurada do tecto apenas por uma fina crina de cavalo, exactamente acima dos seus olhos. Questionou Dionísio sobre o que era aquilo, que lhe respondeu que aquela espada tinha estado sempre ali e fazia parte da sua vida, podendo haver sempre alguém que, por qualquer motivo, a fizesse cair sobre a sua cabeça. Dâmocles, que tinha de repente perdido todo o apetite, levantou-se com cuidado e voltou para sua casa, já sem qualquer inveja da vida real de Dionísio.
Muitos dos detentores de poder nunca ouviram falar desta história, ou julgam que a chamada espada de Dâmocles era mesmo dele. Não sabem que o exercício do poder, só por si, os coloca automaticamente à mercê de traições, enganos, invejas ou mesmo das consequências das suas más decisões.
Alguns, inebriam-se de tal forma com o poder, que o agarram com sofreguidão, nem lhes passando pela cabeça o que sucederá quando o perderem. Normalmente, são os que se acham predestinados, os que pensam ter encontrado a chave para todos os problemas, ou aqueles que muito simplesmente se deslumbram com o poder e com as facilidades e confortos que muitas vezes lhes estão associados, para além da bajulice dos próximos. Por vezes, com trabalhos adicionais e alguma ajuda amiga, lá vão conseguindo evitar que a espada lhes caia em cima enquanto exercem o poder, espada essa que os perseguirá mais tarde para ferir ainda com mais força.
Outros habituam-se ao poder e tomam por hábito aquilo que é excepção e temporário, apenas dando conta da espada quando ela lhes cai em cima. Estarão convencidos de que o poder lhes é devido por nascimento e, ironia maior, nem quando o que tem que acontecer acaba por suceder parece terem verdadeiramente consciência disso, tal é a sua presunção. Outros há que fazem como Dâmocles e, quando percebem os perigos daquilo em que se meteram, desatam a fugir para bem longe. Timoratos, alcançam normalmente o poder por manobrismos de bastidores e são magníficos a prever cenários por serem muito inteligentes, mas revelam-se incapazes de tomar decisões, sem capacidade de escolher seguir por caminhos difíceis, com receio de que a espada lhes caia em cima de imediato.
Claro que na sua esmagadora maioria, as pessoas exercem o poder sabendo que a espada está lá, mas agem com sensatez e respeito pelos outros, nunca experimentando o fio afiado da espada. Sendo assim, a espada de Dâmocles, sendo uma ameaça permanente para os detentores de poder, é na realidade uma defesa dos comuns cidadãos contra o mau uso desse mesmo poder.

quinta-feira, 19 de março de 2015

segunda-feira, 16 de março de 2015

Da “riqueza das nações”



Na semana passada passaram 239 anos sobre a publicação de “A Riqueza das Nações” de Adam Smith. Trata-se de um dos livros mais importantes de sempre, da economia mas também do funcionamento geral da sociedade. Introduziu conceitos originais que hoje são utilizados no dia-a-dia e que vieram substituir velhas ideias sobre a formação de riqueza que não faziam sentido, mas que eram geralmente aceites e que, curiosamente, ainda muita gente segue de forma subliminar.
O primeiro tem a ver com o próprio conceito de riqueza de um país. Adam Smith veio dizer que está naquilo que produz, ao contrário da ideia até então prevalecente que media a riqueza pela quantidade de ouro ou prata que cada país tinha em reserva. Ainda hoje muita gente imagina que as reservas de ouro dos bancos centrais são indicadoras da saúde financeira dos países. Daqui deriva directamente a ideia do “produto interno bruto”, hoje adoptada em todo o mundo. O segundo conceito tem a ver com o número de cidadãos que partilham da produção de riqueza, donde surge o “PIB per capita”, conceito que mostra a importância da relação entre a riqueza produzida e o nº de pessoas que dela beneficiam. Adam Smith não se ficou por aqui e partiu para um terceiro conceito que tem a ver com o nº de pessoas que realmente contribuem para a produção da riqueza de cada país, através do seu trabalho. Trata-se da produtividade que, como é evidente, tem a ver com a própria organização de cada país e da sua capacidade de introduzir melhorias nos sistemas laborais e inovações nos sistemas produtivos.
Na base de toda a riqueza produzida estão as empresas e a sua capacidade para se instalarem no mercado de forma competitiva, sendo aquilo a que se chama vulgarmente o seu capital social determinante para o seu sucesso. O capital social das empresas vai muito para além da sua capacidade financeira e dos seus balanços, já que o seu verdadeiro valor vem do conhecimento que advém do saber fazer, que lhes permite produzir bens diferenciados, com valor próprio e competitivo.

Uma das fábricas de motos mais antigas do mundo é a italiana Benelli, que nasceu em 1921 na cidade de Pesaro. A sua notoriedade tecnológica e comercial manteve-se até ao fim da década de 60. A partir daí, com o surgimento das motos japonesas, a Benelli afundou-se por incapacidade de competir comercialmente com as Honda, Yamaha e Kawasakis, à semelhança aliás, do sucedido com toda a indústria europeia de fabricação de motos. Já neste século, a Benelli foi comprada por um fabricante gigantesco chinês de motorizadas que pretendeu fazer a produção das Benelli na China. Foi um fiasco, porque, apesar de toda a maquinaria e tecnologia transferidas para a Ásia, faltava o saber fazer dos operários italianos. Era necessário um conhecimento específico para produzir aquelas máquinas fantásticas. A empresa chinesa resolveu o problema reiniciando a produção em Pesaro e contratando a antiga mão-de-obra. O capital financeiro pode ser chinês, mas o capital social é italiano e é assim que continuamos a poder ouvir aqueles motores na rua com o seu som inconfundível.
Há poucos dias, uma notícia passou quase despercebida entre nós, no meio da espuma da política e assuntos adjacentes. A fábrica Cerâmica de Valadares, encerrada há dois anos, retomou o seu funcionamento. Também aqui a recuperação só é possível porque há todo um conhecimento que ainda é possível recuperar, a nível de saber fazer, a nível de gestão e de garantia de qualidade de produto fabricado. Aqui são antigos quadros da empresa que conseguiram apoio financeiro de novos investidores, contando ainda com o crucial trabalho de algumas centenas de antigos operários que conhecem bem tudo o que é necessário para que o produto final seja de qualidade e competitivo, mesmo a nível internacional.
Nas suas obras fundamentais, “Riqueza das Nações” e “Teoria dos Sentimentos Morais”, Adam Smith mostrou o papel da produção de riqueza e, além disso, como a produção e troca de produtos é impulsionada pela especialização, crucial para que as empresas se afirmem nos mercados e criem a riqueza necessária a todos. Apesar dos mais de duzentos anos sobre a sua publicação, os exemplos empresariais mostram bem a sua actualidade.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Março de 2015

quarta-feira, 11 de março de 2015

11 de Março

Passam hoje 40 anos sobre o 11 de Março. Naquele dia acabou algo e entrou-se numa espécie de túnel do tempo que deveria terminar numa "revolução de Outubro", mas que desembocou num dia de Novembro, graças a um punhado de militares a sério.
Mas foi ali que começaram as nacionalizações e a destruição sistemática do aparelho produtivo do país.
Ao contrário do que possa parecer, a foto acima não é de um cartaz de 1975 e sim a capa de "O Militante" de Abril de 2015. Não é preciso dizer mais nada.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Ética e política



Poder-se-ia pensar que, em democracia, as épocas de maior atrito político corresponderiam obrigatoriamente a lutas de carácter ideológico profundo e evidente. Em contraste, as lutas personalizadas e baseadas em ataques pessoais seriam vistas como baixa política, praticada por gente sem escrúpulos e falha de ética. No tempo que passa, em que o espaço comunicativo proporcionado pela internet substituiu a informação, arrastando consigo os clássicos meios escritos e televisivos, a capacidade de uso e abuso da espuma do acessório e imediatista faz as delícias de políticos populistas e pescadores de águas turvas que apenas pretendem destruir o existente.
Convém, precisamente em momentos de crispação política, manter alguma distanciação e, acima de tudo, ter em atenção o valor relativo das coisas e evitar atitudas falsamente moralistas.
Ao longo da História surgiram muitos ensinamentos que nos podem ajudar a discernir o melhor caminho, mesmo que muitas vezes possam vir até nós pela via do paradoxo.
Uma das lições mais referidas de Maquiavel refere que, em política, os aliados, quaisquer que eles sejam, não são amigos, como aliás Churchill viria a reconhecer, séculos mais tarde. Ao escrevê-lo, Maquiavel questiona directamente as nossas convicções religiosas ou convenções sociais, mesmo as da actualidade. Maquiavel ataca os moralistas que nos querem fazer crer que os líderes devem ser generosos, agradecidos e fiéis. Tal como hoje nos querem fazer crer que os líderes políticos devem ser, acima de tudo bonzinhos, simpáticos e fazerem o que aqueles que têm acesso aos meios dizem que é bom.

Mas já Aristóteles, na obra sobre a Ética que dedicou a seu filho Nicómaco havia alertado sobre a diferença fundamental entre a razão e o sentimento. A felicidade seria o resultado de uma vida virtuosa encontrada num justo meio entre os extremos através do exercício de prudência. Para o filósofo grego, as virtudes tinham características diferentes, divididas basicamente entre a inteligência, a sabedoria e a prudência e as outras como a liberalidade e a temperança. Ninguém é perfeito, pelo que se deve encontrar a justa composição das virtudes pessoais.
A política é a actividade mais importante de todas, porque trata do bem da cidade, da colectividade que aliás, nos dias de hoje, paga com os seus impostos tudo aquilo que é a actividade do Estado. A acção política é ainda das mais complexas que existem, já que tem de ir buscar informação e capacidades às mais diversas formas de conhecimento humano e, não menos importante, deve agregar as diversas virtudes enunciadas, para atingir o objectivo da “felicidade” da Cidade entendida como comunidade.
O momento político que se vive em Portugal é tudo menos propício à prossecução do objectivo de encontrar a “felicidade” da polis. Os sentimentos tomam conta da actualidade, relegando a razão para os fundos da quase inexistência. Mas a abertura da caixa de Pandora liberta sempre muitos demónios não se sabendo, depois de soltos, quem virá a perder ou a ganhar, já que passado um tempo será até difícil perceber quem tirou a tampa.
Está bom de ver que não me refiro à Justiça, para quem a Ética é e deve ser a Lei da República. A Justiça tem o seu tempo e procedimentos próprios, felizmente independentes dos tempos políticos. Embora se possa recear a tentação política de limitar a sua acção, não me parece que isso venha a suceder, dado o grau superior da sua actual organização e capacidade técnica dos seus agentes.
Mas, até ás próximas eleições legislativas, estando os demónios à solta como estão, serão de esperar muitas denúncias, certamente muitas falsas e outras parte da verdade, que criarão perplexidades e confusões nos espíritos dos portugueses. Tenhamos nós próprios as virtudes descritas por Aristóteles, já que do mundo político e do seu reflexo que é a comunicação social andarão tão ou mais arredadas do que já hoje andam.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 9 de Março de 2015