Havia dois anos
que, pela primeira vez na sua História, a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda
tinham o mesmo rei, James I depois do falecimento da rainha de Inglaterra. A
rainha Elizabeth I morreu sem filhos, tendo os ingleses aceite como seu rei James
VI da Escócia por ser filho da sua familiar mais próxima, Mary rainha dos
escoceses que assim se tornou o seu James I. Em 1605 preparava-se uma revolta
católica contra James I que era protestante, tendo mesmo publicado uma versão
própria da Bíblia. A acção fundamental da revolta seria o assassinato do rei e
do Parlamento inglês através de uma grande explosão. Para tal foram colocados
mais de trinta barris de pólvora nas caves do edifício do Parlamento, tendo
ficado um soldado inglês católico chamado Guy Fawkes a guardá-los. Houve, no
entanto, uma denúncia e Guy Fawkes foi capturado, torturado e executado
juntamente com os outros conspiradores, de uma forma que se pretendeu que
ficasse como exemplo dissuasor de futuras revoltas. A sua captura ainda hoje é
celebrada todos os anos em 5 de Novembro com fogueiras e fogo de artifício na
chamada “noite das fogueiras”. E também todos os anos, antes da abertura
oficial do Parlamento, a guarda oficial da rainha faz uma vistoria prévia às
caves do edifício, ajudando à memória de Fawkes e diria eu, não vá o diabo
tecê-las.
Já nos nossos dias,
no fim da primeira década do século XXI, surgiram por todo o lado manifestações
com a utilização da máscara de Guy Fawkes que se tornou conhecida em todo o mundo.
Os activistas do grupo “Anonymous” fizeram dessa máscara o seu símbolo e assim
Guy Fawkes tornou-se no símbolo das manifestações “contra os governos”, dos
“ocupas”, de apoio às “primaveras árabes”, etc. mas usada também por Julian
Assange do WikiLeaks, com a vantagem de não ser possível identificar os
manifestantes de rua através de fotografias ou filmes.
Mas como é que,
depois de 400 anos Guy Fawkes, ou a sua máscara, saltou assim para as ruas? Nos
anos 80 surgiu em Inglaterra a banda desenhada “V for Vendetta” em que o herói
anarquista usava precisamente uma máscara de Fawkes. Em 2006 foi feito um filme
sobre essa história, que terminava com uma multidão mascarada de Fawkes a ver o
edifício do Parlamento britânico a explodir. Para ajudar, o site do grupo
“Anonymous” fornece hoje a possibilidade de comprar uma série de máscaras de
Guy Fawkes, mas também camisolas e outros artigos, amplamente utilizados nas
manifestações.
Num tempo de
pós-realismo, pós construtivismo, pós-estruturalismo, pós tudo e mais alguma
coisa, até de pós-verdade, não deixa de ser curiosa esta utilização, como
anti-herói, de alguém que durante quatrocentos anos foi utilizado festivamente
de forma oposta e até ensinado às crianças inglesas como sendo o inimigo.
Estas manifestações
fazem parte de um ambiente de recusa de valores e das construções sociais que a
Humanidade foi levantando ao longo de séculos. Não surpreendentemente, este
ambiente foi surgindo num Ocidente que atingiu um patamar de bem-estar
generalizado nunca antes conhecido e que, com a globalização, se vê obrigado a
ceder nalguns dos seus confortos, que se transferem como melhorias para milhões
de pessoas noutras partes do mundo, bem mais atrasadas.
Muitas dessas
pessoas olham hoje para a Europa e vêem um espaço de riqueza que pensam ser
infindável e capaz de ser distribuída por muitos mais. Os refugiados que fogem
de países permanentemente em guerra, governados por gente sem escrúpulos que
amontoam enormes fortuna pessoais, sem liberdade sem futuro para as inúmeras
crianças que lá nascem, tentam por todos os meios alcançar esse paraíso
terrestre. Vêm do médio-oriente, mas também do norte de África e mesmo da
África subsariana, metendo-se nas mãos de traficantes de pessoas sem escrúpulos
que as roubam e, demasiadas vezes, as levam à morte certa.
Mas muitos chegam
aos países que os acolhem para verem o sonho de partilha da riqueza transformar-se
num pesadelo ao descobrirem que a pouca capacidade muitas vezes e a falta de
vontade de acolhimento noutras, os faz viver de novo sem esperanças em campos
de refugiados agora bem longe das suas terras de origem.
E, perante a
chegada de tanta gente de fora, com referenciais sociais e culturais que entram
muitas vezes em choque com o que foi conseguido em séculos, muitos cidadãos
destes países sentem-se com razão preocupados e mesmo perdidos, receando pelo
seu futuro e dos seus filhos. Até porque muitos refugiados trazem consigo o
gérmen da intolerância religiosa e social, como a homofobia e o desrespeito
pela mulher.
O caldo social é hoje
em todo o ocidente favorável ao surgimento dos mais diversos extremismos e já
estamos a ver as consequências, não sendo necessário apontar os exemplos. E a
generalização da máscara de Guy Fawkes é bem o símbolo da destruição da
sociedade ocidental, tal como a conhecíamos.