segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O populismo, doença senil da democracia?




 Uma espécie de vendaval varre as democracias por todo o Ocidente, com a generalização das ideias da “devolução do poder ao povo”. Depois de décadas de crescimento económico contínuo que trouxeram um bem-estar generalizado associado a um período de paz sem par na História da Europa, o desaparecimento da União Soviética e implosão do bloco comunista fizeram sonhar que o fim da “guerra fria” significaria o alastrar da paz e da prosperidade a todo o mundo.
Puro engano. Sob o adormecimento das lideranças europeias, qual Inês descrita por Camões "Estavas, linda Inês, posta em sossego, de teus anos colhendo doce fruto, naquele engano da alma, ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito”, foi germinando um monstro perigoso que surge hoje à luz do dia de forma ameaçadora.
Durante anos os cidadãos foram sendo bombardeados com críticas ao “sistema”, à globalização e à organização económica e política. As críticas deixaram de ter uma relação evidente com as diversas opções ideológicas. Foi criado um caldo de insatisfação geral no qual vivem os mais diversos grupos contestatários sem qualquer solução concreta para os problemas que, esses sim, são reais e bem sentidos pelas pessoas comuns.

As propostas alternativas ou pura e simplesmente não existem, ou são disfarçadas debaixo uma linguagem que apela sistematicamente aos instintos mais baixos e primários como sejam a inveja, o racismo, o isolamento e a intolerância em geral. A mentira, que nunca andou muito afastada do discurso político, pega nos factos e envolve-os em interpretações distorcidas naquilo a que chamam “narrativas”, chegando ao que os estudiosos chamaram “pós-verdade”.
Os cidadãos mais conscientes da realidade agarram-se ao que lhes pode dar informação e armas para se defenderem. Não será por acaso que, nas últimas semanas, a obra “1984” de George Orwell que apresenta aos leitores a famosa visão distópica que incluiu uma “novilíngua” disruptora da realidade voltou para a lista das mais vendidas.

A Democracia, tal como a conhecemos, já tem bastantes décadas, embora não tantas como se possa pensar, se olharmos para as limitações aos direitos de voto a grandes partes da população em muitos países até já bem dentro do século XX. Apesar disso, foi-se consolidando o conceito de cidadania, da preocupação pelo “bem comum”, base fundamental do funcionamento da democracia com respeito pela Liberdade, mas também da Igualdade, sem o que será letra morta.
O populismo está a minar os alicerces da Democracia que levou tantos anos a consolidar-se. Vindos dos extremos políticos, muitos políticos perceberam as fragilidades dos regimes democráticos, utilizando uma linguagem que se pretende como libertadora dos sistemas cruzados de protecção, apelando directamente aos eleitores. Quando, por exemplo, Donald Trump afirma que vai ser “o maior criador de emprego que Deus já viu”, está obviamente a falar para os americanos dizendo-lhes o que eles querem ouvir esquecendo que, hoje em dia, a economia está globalizada e que por cada emprego que artificialmente criar no seu país são muitos empregos que desaparecem por todo o mundo. Os defensores do “brexit” acenam ao eleitorado britânico com um Reino Unido “livre e independente” quando, na realidade, apenas vão conseguir o isolamento económico e político do seu país que, ao contrário dos seus sonhos delirantes, já não é, há muitos anos, o Império dominador de meio mundo.
Os populistas não necessitam de assumir posições ideológicas, substituindo os antigos “ismos” por apenas um, o populismo. Ao rejeitar sistematicamente as elites e as instituições políticas, os populistas parecem responder aos anseios das populações que, ao longo dos anos, foram sendo anestesiadas quanto ao funcionamento das democracias. Mas, na realidade, estão a criar um vácuo, e eles sabem-no bem, que será preenchido por algo, dado que a política tem horror ao vazio.
Há quase cem anos, depois da guerra civil Lenine colocava os bolcheviques a combater os esquerdistas num “Terror” que só terminou quando Estaline conseguiu assassinar Trotsky lá longe, no México; para tal, como sempre, criou um fundamento ideológico que explicou no seu livro “O esquerdismo, doença infantil do comunismo”. Hoje, numa época em que se pode estar a assistir ao fim da democracia tal como a conhecemos, é o populismo que parece surgir como a sua doença senil. E temos que ter uma clara consciência disso, para nos precavermos contra o animal perigoso que está a surgir.


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