Durante
a Idade Média a que muitos, erradamente como demonstrou Umberto Eco, se referem
ainda como a “Idade das Trevas”, surgiu o mito do país da Cocanha, espécie de
paraíso terrestre, onde a abundância fornecida pela natureza era de tal ordem
que ninguém precisava de trabalhar, o que era mesmo proibido, vivendo-se numa
festa permanente e perpétua, sem fome nem guerras. Uma utopia, muito antes de
Thomas More, que exprimia o desejo de paz, igualdade e prosperidade universal. No
país da Cocanha as casas eram feitas de doces, as montanhas de gelados, havia
sempre vinho, o sexo era completamente livre e toda a gente permanecia jovem para
sempre.
O país da Cocanha
foi representado por Peter Bruegel-o-Velho num quadro famoso em que
representantes do clero, da nobreza e do povo recebiam tudo o que queriam
refastelados no chão, sem precisarem sequer de se mexer, caindo-lhes as
iguarias do céu. Foi, talvez, a forma que o protestante Peter Bruegel encontrou
para sublimar a destruição de Bruxelas pelos soldados do Duque de Alba enviados
pelo católico Filipe II de Espanha para combater a Revolta dos Países Baixos,
ou Guerra dos 80 Anos.
Já os poemas medievais
Carmina Burana hoje bem conhecidos pelo trabalho de Carl Orff se lhe refeririam,
retratando as danças selvagens, o amor livre, o vinho e a licenciosidade.
Diversos músicos mais recentes ou da actualidade abordaram o país da cocanha
nos seus temas, como Edward Elgar que escreveu uma abertura de concerto, Georges
Brassens na canção “Auprès de mon arbre” e também Jacques Brel, entre outros; mesmo
no filme da Disney Pocahontas se refere o Novo Mundo como terra de cocanha. Podemos
ainda olhar para o movimento hippie dos anos 60 do século XX como uma espécie
de concretização do país da cocanha em que todos os desejos tinham resposta
imediata.
O mito do país da
cocanha não deixa também de nos lembrar o paraíso bíblico em que Adão e Eva
viviam na felicidade absoluta, antes de comerem a maçã, pelo que o seu
surgimento não é uma novidade absoluta na História.
A persistência da
mitologia do paraíso terrestre traduzido de forma artística ou mesmo subliminarmente
na política deveria fazer-nos pensar na sua justificação e na enorme influência
que tem tido na humanidade ao longo dos tempos, a diversos níveis, já que promessas
de paraísos terrestres é coisa que não tem faltado.
Todos aprendemos
que a Revolução Francesa foi um passo da humanidade no sentido do progresso. Na
realidade, os desejos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade rapidamente
descambaram, não numa aproximação de um paraíso terrestre como muitos
imaginaram no seu princípio, mas numa espiral de terror, assassínios e pobreza
que rapidamente destruiu os seus próprios mentores terminando ingloriamente num
“império” que levou a guerra e a destruição a toda a Europa. Nem Portugal, aqui
neste cantinho da Europa, escapou. Isto, enquanto a Inglaterra e muitos outros
países prosseguiam o seu caminho no mesmo sentido de desenvolvimento sem
necessidade da hecatombe da Revolução Francesa.
Faz este ano um
século que se iniciou uma das experiências mais impressivas visando a
construção de um “paraíso” na Terra, sem exploradores nem explorados, em que
todos seriam iguais e em que a Liberdade seria lei. O regime instituído na
Rússia pelo partido, primeiro chamado bolchevique e depois comunista, que ao
longo dos anos teve como líderes assassinos notórios como Lenin, Stalin,
Krushchov ou Brejnev foi um dos maiores desastres da História. As suas vítimas contam-se
por muitas dezenas de milhões de mortos por fome e guerra, para além da
imensidão de degredados. Tudo isto, não para construir impérios assumidamente militarizados
e racistas como os nazis e fascistas, mas tendo a boa intenção da construção de
um “paraíso terrestre” concreto e verdadeiro.
Um pensamento minimamente
racional deveria levar-nos a desconfiar de todos os que ainda hoje nos prometem
paraísos terrestres, que são os populistas de todos os matizes ideológicos. Especialmente
depois das experiências trágicas provocadas pela transposição para a realidade
das ideologias construtoras de “homens novos”, da prosperidade universal e da
paz para todos enfim conseguida.