Por acaso, ou
talvez não, sucedeu no dia seguinte às comemorações do Dia da Liberdade, o que
torna a atitude ainda mais significativa pelo contraste entre as palavras bonitas
de um dia e a prática logo após. Em pleno debate na Assembleia da República, o
Primeiro-Ministro recusou responder a uma simples pergunta feita pela oposição.
E recusou fazê-lo por quatro vezes, não podendo assim ficar qualquer dúvida
sobre o que pensa da competência de fiscalização da Assembleia da República,
definida na Constituição da República Portuguesa. Para quem anda mais
distraído, recordam-se os artigos 114º sobre o direito da oposição, o artigo
156 sobre os poderes dos deputados e, finalmente, o artigo 162º sobre a competência
de fiscalização: “Vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar
os actos do Governo e da Administração”. A Constituição da República vigora
para todos os portugueses e não apenas para alguns que parece julgarem-se donos
dela, mas que rapidamente a esquecem quando não lhes convém, dando razão a
Lincoln que dizia que se queremos saber da qualidade de um político, basta
dar-lhe um pouco de poder e ver como ele o exerce.
E qual era a
pergunta a que o Primeiro-Ministro não respondeu? Apenas saber as razões da
recusa do Governo em aceitar os nomes propostos para o Conselho de Finanças
Públicas (CFP) pelo Banco de Portugal e pelo Tribunal de Contas.
O Primeiro-Ministro,
visivelmente enfastiado com a insistência da oposição, acabou por dizer que não
percebia a importância da pergunta, quando o país tem tantos problemas graves
para resolver. Conclusão: não vale a pena, portanto, a oposição tentar exercer
o direito de fiscalizar as decisões governamentais que não tem resposta, uma
vez que o próprio decide aquilo a que responder ou não responder.
Pelo incómodo
causado e pela ausência reiterada e assumida de resposta ficou-se a perceber que
a questão tem muito que se lhe diga. Não se coloca em causa a legitimidade governamental
para nomear ou não os elementos do Conselho de Finanças Públicas que lhe foram
propostos, sendo essa discussão certamente passível de concitar doutos
pareceres jurídicos para um e outro lado. O que é certo é que o Governo tem a
estrita obrigação de, perante a Assembleia da República, assumir e justificar
as suas decisões, o que se recusou a fazer. Vê-se porquê e o que se vê não é
bonito de se ver. Nos dias de hoje, os sistemas democráticos maduros
desenvolveram um conjunto de entidades independentes com capacidade técnica
para fazer análises e, de forma independente, produzir relatórios que frequentemente
não são do agrado dos poderes executivos, por mostrarem uma realidade diferente
da “narrativa” que constroem para encher o olho aos eleitores. No seu conjunto formam
um sistema, que se pretende equilibrado, daquilo a que costuma chamar “checks
and balances” ou em português pesos e contrapesos, que se destinam a limitar os
poderes, mas essencialmente a evitar chegar a situações-limite que já só se
resolvem com soluções extremas. O Conselho de Finanças Públicas é precisamente
uma dessas entidades, cuja função é “fiscalizar o cumprimento das regras
orçamentais em Portugal e a sustentabilidade das finanças públicas”. Foi criado
em 2011 na altura do desastre das contas públicas que levou ao pedido de ajuda
externa e pretende evitar que os governos manipulem a informação sobre as
contas, trazendo transparência e credibilidade ao Estado. A sua independência
relativamente ao poder executivo é fundamental para que os portugueses possam
ter uma informação do cumprimento dos orçamentos de estado e da política
financeira mais consentânea com a realidade.
A recusa do
Primeiro-Ministro em fundamentar a sua decisão de não aceitar as indicações do Tribunal
de Contas e do Banco de Portugal em plena Assembleia da República mostra assim,
à evidência, duas coisas, cada uma delas pior que a outra: que o Governo
convive mal com instituições independentes com capacidade para escrutinar
tecnicamente as suas contas e ainda que despreza publicamente os direitos
constitucionais da oposição.