“"Nenhum
homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado
fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra
ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus
pares, ou pela lei da terra."
Em plena Idade
Média, o Rei reconhecia um limite aos seus poderes e uma garantia à liberdade
dos súbditos.
Claro que João
sem Terra não assinou o que ficou conhecido como Magna Carta com grande gosto,
nem sequer com intenção de a vir a cumprir na sua totalidade. As suas
sucessivas derrotas militares e o afrontamento ao papa Inocêncio III ao não
aceitar a nomeação do Arcebispo de Cantuária, tinham-no levado a uma situação
de fragilidade perante os nobres do reino que colocava em perigo a sua situação
como rei. Depois de se humilhar ao aceitar o nomeado pelo Papa, colocando-o
assim do seu lado, o Rei João aceitou igualmente os termos da Magna Carta, que
limitava seriamente os seus poderes. Havia mesmo um artigo que estabelecia um
conselho de 25 nobres com o direito de ficarem com todas as posses do rei, caso
ele não cumprisse alguma das regras do tratado. Passado um escasso mês sobre a
assinatura, João escreveu ao Papa a pedir a anulação da Magna Carta, o que
conseguiu, dadas as suas novas boas relações com Roma.
O documento, mesmo
com alterações e mesmo anulações de algumas partes, como a referente ao
conselho dos 25 nobres, sobreviveu ao longo dos anos como inspiração para
futuras constituições. Os pais fundadores da Constituição Americana vieram no
final do século XVIII a tomar a Magna Carta como documento seminal para a
definição das liberdades individuais e limite da acção do Estado perante o
indivíduo e para a definição do princípio fundamental da “não taxação, sem
representação”.
Recordo que,
entre nós, a primeira Constituição data de 1822, tendo tido vida curta, já que
foi substituída em 1826 pela Carta Constitucional que vigorou com diversas
alterações até à implantação da República em 1910.
A originalidade e
importância da Magna Carta, oitocentos anos depois da sua assinatura, mantém-se
no respeito do Estado perante os cidadãos e no direito destes a julgamento
justo em vez da arbitrariedade do poder.
Nestes dias em
que tudo é posto de novo em causa por discussões sobre direitos individuais
fundamentais como a liberdade de imprensa e de opinião perante poderes
religiosos, militares, políticos e económicos, ir buscar os fundamentos da
nossa liberdade e civilização ao fundo dos tempos é, não só uma comemoração mas
também uma necessidade. Oitocentos anos de Magna Carta não são uma pertença
apenas da História de Inglaterra, mas de toda uma sociedade liberal que tem
sobrevivido aos ataques dos mais diversos radicalismos que, sistematicamente,
têm tentado substituir os direitos dos indivíduos pelos interesses do Estado.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Janeiro de 2014