Tempos estranhos estes, em que o afastamento entre as pessoas passou a ser regra e, mais que isso, mesmo obrigação legal. Meses e meses sem contactos pessoais o que, para além de consequências psicológicas evidentes, provocará alterações sensíveis no próprio funcionamento da sociedade, já que o Homem sempre foi um animal gregário. Famílias que se fecham em casa sem se visitarem. Famílias que deixam de ir ao restaurante para evitar contágio. Viagens de turismo que não se fazem e familiares que não se visitam. As consequências económicas são de todos conhecidas por evidência imediata, já as outras não, só se descobrirão mais tarde.
Mas, mesmo nestas condições sociais de isolamento pessoal há algo que resiste, porque está para além da distância e do tempo: a amizade. Desde bancos de escola onde alegrias e jogos infantis criaram relações simples e inocentes mas duradouras para a vida, até mesas de café onde discussões e conversas sobre tudo e mais alguma coisa nos levaram a conhecermo-nos melhor e aos outros, passando por férias de verão mais animadas, muitas situações ao longo da vida nos levaram a criar relações especiais com outras pessoas. Relações de amizade que, tantas vezes, acontecem entre pessoas muito diferentes em feitios, interesses imediatos, quase como se assim se obtivessem equilíbrios que acabam por tornar cada um melhor e mais receptivo à diferença, através da compreensão do outro. Relações que funcionam, tantas vezes, como estabilizadores emocionais durante as crises mais ou menos sérias que todos acabamos por ter ao longo da vida.
Quando reencontramos amigos verdadeiros, sentimo-nos como se o tempo não tivesse passado desde o último encontro. Ainda que se tenham passado dezenas de anos, é possível e mesmo frequente que a conversa seja retomada no ponto em que então ficou, como se tivesse acontecido há poucos dias. Comigo já aconteceu. Aqueles amigos que já nos deixaram para sempre mantêm-se de tal forma vivos na memória dos afectos que, quando nos lembramos deles, é possível recordar com exactidão palavras, frases, entoações, expressões. Nada disso desaparece da nossa memória e também tal me acontece em relação a amigos que já não estão fisicamente entre nós. Precisamente o contrário daquelas outras amizades que, por serem meramente circunstanciais, se evaporam para evitar situações difíceis. Como dizia Confúcio: para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça; no sucesso, verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade.
A amizade séria pressupõe um respeito pelo outro, mas é também uma manifestação de confiança ilimitada. Não tem a ver com o amor ou a paixão, sendo antes disso uma relação estável, que autoriza uma dádiva mútua sem nada exigir e que se mantém com a passagem do tempo. Devo dizer que já encontrei pessoas que nunca tiveram amizades, tiveram colegas e, eventualmente amores e desamores, mas nunca sentiram essa sensação de poder confiar totalmente em alguém como amigo e só posso lamentar que tenham perdido na vida algo de tão importante.
Esta crónica não nasceu do acaso. Foi suscitada pela surpresa de, mesmo em situações de confinamento pandémico, ser possível verificar como amizades pessoais de muitos anos se mantêm vivas de uma forma absolutamente espantosa e com uma capacidade de dádiva e de preocupação cuidadosa que revelam aspectos tantas vezes escondidos mas bem vivos. Redescobertas sempre agradáveis de fazer e que nos levam a recordar ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY:
“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Setembro de 2020