segunda-feira, 14 de setembro de 2020

UM PAÍS QUE NÃO É PARA IDOSOS

 


Para choque de muita gente, a pandemia Covid 19 veio destapar uma realidade que se encontrava bem escondida ou, talvez, deliberadamente esquecida pela maioria das pessoas. De repente parece que os portugueses acordaram para as condições em que vivem grande parte dos seus mais velhos. Os chamados «lares da terceira idade», designação as mais das vezes eufemística para designar verdadeiros depósitos de velhos vieram a mostrar-se como altamente permeáveis ao vírus SARS-CoV-2, havendo actualmente mais de 30 desses lares com surtos activos e tendo, em consequência, morrido até hoje mais 720 pessoas.

O sucedido no Lar da Misericórdia em Reguengos de Monsaraz não pode ser esquecido e muito menos calado, mas apenas como exemplo do que se passa pelo país e que necessita urgentemente de ser objecto de atenção e de actuação dos responsáveis pela Segurança Social. Descobriu-se com espanto geral e infelizmente também com notória fuga às responsabilidades por quem devia ter outra atitude, que muitos dos idosos que morreram no surto verificado naquele lar terão sido vítimas de falta de cuidados sanitários e médicos e não directamente da acção do vírus. Mas é muito provável que o que aconteceu naquele lar se tenha verificado um pouco por todo o país, embora só ali tenha saltado para a comunicação social, pelas razões conhecidas.

Todos sabemos do progressivo e rápido envelhecimento da população portuguesa e das consequências que tal facto vai trazer ao sistema da segurança social, se o sistema vigente não for radicalmente alterado. Acresce que as actuais soluções de apoio a lares sociais não são, do ponto de vista puramente humano, aceitáveis e ainda menos desejáveis. Isto falando dos lares legais porque, pelo que vamos vendo, o número de instalações ilegais, sem qualquer controlo nem fiscalização, é enorme.

Os idosos são colocados nos lares, perdendo grande parte da sua vontade própria, sendo sujeitos a rotinas que os reduzem a utentes comandados e sem espaços ou actividades pessoais. Todos já constatámos como os utentes dos lares dispõem generalizadamente de quartos para duas pessoas, com camas próprias mas sem secretárias nem sofás onde possam desenvolver trabalhos ou ler na intimidade. Os dias são passados colectivamente, a ver televisão em conjunto havendo apenas, quando as há, uma ou outra saída igualmente colectiva. Por razões de facilidade e economia de gestão, os utentes são mesmo impedidos de ir ao seu próprio quarto durante o dia. Nestas condições, ainda que entrem nas instituições com algumas capacidades pessoais, os idosos rapidamente se transformam em velhos que apenas aguardam pela chegada da hora inevitável. As excepções a esta regra são raras, de louvar, mas são isso mesmo: excepções

Muitas das instituições que gerem lares de terceira idade pertencem à chamada economia social e prestam um papel essencial que o Estado vai apoiando com um suporte financeiro insuficiente. Também nesta área social, talvez dizendo melhor, principalmente nesta área, a pobreza infiltra-se insidiosamente por todos os interstícios do sistema. As instituições que recebem utentes apoiados pela Segurança Social sabem bem que a contrapartida que recebem do Estado é insuficiente para cobrir os custos, pelo que têm de ir buscar a outras origens o necessário para que aqueles utentes sejam tratados de uma forma pelo menos digna.

A pandemia mostrou esta realidade e seria bom que a sociedade, como um todo, aproveitasse para alterar o paradigma dos idosos em Portugal, indo observar o que se faz em muitos países europeus, já que tem de ser esse o nosso actual termo de comparação. O Estado, através da Segurança Social, e as inúmeras entidades que intervêm nesta área devem encontrar alternativas ao actual estado de coisas, de forma clara e pensando fundamentalmente na dignidade dos utentes das instituições.

Tornou-se vulgar, quando se fala do número de mortos com ou pelo vírus, acrescentar: ah, mas tinham oitenta e tal ou noventa e tal anos, como se essa idade fosse um anátema e não um prémio pela vida que se levou, contribuindo para se obter tudo aquilo de que os jovens de hoje, que serão os idosos de amanhã, usufruem. Os idosos têm, pela própria evolução da vida, maiores fragilidades, exigindo por isso mesmo mais cuidados e não abandono criminoso. A idade não é algo que se deva esconder e a dignidade humana deve existir até ao momento final. O exemplo dado pelo Papa João Paulo II que, em vez de esconder a degradação da sua condição física, a assumiu publicamente contrasta de forma absoluta com a atitude de Hemingway que, perante a falta de pulsão sexual resolveu o problema indo buscar a caçadeira ao armário e acabando com a vida. Mas, se virmos bem, em ambos os casos tratou-se de assumir o seu destino, ao contrário da tristeza degradante dos lares de 3ª idade portugueses.
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 de Setembro de 2020

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