De quando em
vez, sem que pareça haver uma razão concreta para tal, pode ser um odor, a
passagem num certo local, sei lá o quê, vem-nos à memória algo absolutamente
corriqueiro como a compra de um livro ocorrida há dezenas de anos. Se essa
compra tiver sido numa loja de praia que até vendia livros e que já não existe
por ter dado lugar a um conjunto chocante de falta de gosto de prédios de
minúsculos apartamentos de praia para emigrantes e o livro também tiver ficado
na memória, estão juntos motivos mais que suficientes para surgir uma crónica
algo diferente. E se isso tudo servir para desviar o espírito dos tempos que
correm, ainda melhor. O autor do tal livro é Stefan Zweig, o seu título, «24
horas na vida de uma mulher», e ficou-me na memória desde essa altura em que o
li, diga-se na juventude dos vinte anos, dando gosto a revisitação. Obra
aparentemente simples, mas de uma densidade psicológica enorme e demonstrativa
da capacidade de Zweig de analisar as mais profundas emoções e sentimentos do
ser humano.
Em Agosto de
1940 Stefan Zweig e a sua mulher Lotte Altmann viajaram de Nova Iorque para o
Brasil pela primeira vez, regressando pouco tempo depois para residirem nesse
país de que Zweig tanto gostou, tendo mesmo sido o escritor a dar-lhe o epíteto
que lhe ficou colado: «Brasil, país do futuro».
Stefan Zweig
era um austríaco de ascendência judaica, nascido em Viena em 1881 no seio de
uma família de posses. A sua obra variada e extensa é testemunho do seu amor
pela dignidade humana, do seu desejo de uma sociedade respeitadora da Liberdade,
da noção da necessidade da Cultura para o desenvolvimento humano, bem como da
sua admiração pelos autores das mais diversas artes.
Na obra
«Momentos Estelares da Humanidade» Stefan Zweig aborda, em catorze episódios,
aqueles que considerava serem dos momentos mais importantes da humanidade, numa
escolha assim justificada:
«O que
normalmente se desenrola devagar, de maneira sucessiva ou sincrónica,
comprime-se num único instante que determina e decide tudo […] Procuro aqui
evocar, a partir das mais variadas épocas e regiões, alguns desses momentos
estelares; chamei-lhes assim porque, resplandecentes e inalteráveis como
estrelas, brilham para além da noite do efémero.»
Nos dias de
hoje, em que se elege como fundamental o que é tantas vezes ligeiro e
inconsequente, impressionará o que Stefan Zwieg considerava verdadeiramente
fundamental, como sejam a conquista de Bizâncio pelos turcos, a descoberta do
oceano Pacífico por Núñes de Balboa, como surgiu o hino A Marselhesa, a
história de amor que inspirou Goethe para a «Elegia de Marienbad» ou mesmo a
crise que levou Handel a compor o seu «Messias», entre outros.
De entre as
numerosas biografias que Stefan Zweig escreveu, e não esquecendo a de Romain
Rolland, saliento a obra «Triunfo e Tragédia de Erasmo de Roterdão» sobre Erasmo de Roterdão, grande
defensor do acesso à cultura: «Aquele que sabe sugerir aos homens um novo
ideal, a fé no progresso moral da humanidade, torna-se o guia dos seus
contemporâneos: Erasmo foi esse homem.». Publicada em 1934, anunciava os
temores do escritor perante os totalitarismos que surgiam na Europa que todos
hoje sabemos iriam em breve envolver o continente e a seguir o mundo inteiro
numa tragédia inominável, consequência dos fanatismos contrários à tolerância e
ao diálogo.
Nesse mesmo ano de 1934 Stefan Zweig
exilou-se da Áustria prevendo o que se iria seguir após Hitler ter chegado ao
poder na Alemanha no ano anterior com as suas políticas anti-semitas. Apesar de
a religião não ter na sua vida um papel central e assumindo que apenas por
acidente de nascimento os pais eram judeus, Stefan Zweig sabia que as suas
origens e o humanismo e pacifismo que adoptava não seriam tolerados pela
barbárie que se afirmava.
Sendo nessa
altura já um dos escritores mais famosos e vendidos do mundo, passou a viver em
Inglaterra, tendo obtido a cidadania britânica. Na sequência da invasão nazi da
Europa, Zweig e a sua mulher foram para os Estados Unidos em 1940
estabelecendo-se em Nova Iorque por pouco tempo, dado que após a viagem ao
Brasil em Agosto desse mesmo ano, decidiram estabelecer-se no país
sul-americano em Petrópolis, perto do Rio de Janeiro. Já no Brasil escreveu a obra
autobiográfica «O Mundo que Eu Vi» em que se mostra nostálgico perante um mundo
e uma Europa desaparecida com a Primeira Guerra Mundial.
Face à
hecatombe da Grande Guerra que não suportavam ver, Stefan Zweig e a sua mulher
Lotte decidiram pôr termo à vida em 1942 com uma nota de despedida em que o
escritor se explicou: «Deixo saudações a todos os meus amigos: talvez vivam
para ver o nascer do sol depois desta longa noite. Eu, mais impaciente, vou-me
embora antes deles».
George Steiner, que há
pouco tempo nos deixou, ensinou-nos esta necessidade de luta constante pela
cultura, pelo direito ao belo, pela complexidade das relações e pelo
conhecimento e História, algo que se torna tão importante nos dias de hoje. Se
há alguém por quem devemos ter respeito será por quem não suporta viver num
mundo inimigo da cultura onde o materialismo e o fanatismo imperem. Por isso
relembrar pessoas com Stefan Zweig, é tão importante.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Março de 2021