segunda-feira, 1 de março de 2021

Stefan Zweig, artista sem concessões

 


De quando em vez, sem que pareça haver uma razão concreta para tal, pode ser um odor, a passagem num certo local, sei lá o quê, vem-nos à memória algo absolutamente corriqueiro como a compra de um livro ocorrida há dezenas de anos. Se essa compra tiver sido numa loja de praia que até vendia livros e que já não existe por ter dado lugar a um conjunto chocante de falta de gosto de prédios de minúsculos apartamentos de praia para emigrantes e o livro também tiver ficado na memória, estão juntos motivos mais que suficientes para surgir uma crónica algo diferente. E se isso tudo servir para desviar o espírito dos tempos que correm, ainda melhor. O autor do tal livro é Stefan Zweig, o seu título, «24 horas na vida de uma mulher», e ficou-me na memória desde essa altura em que o li, diga-se na juventude dos vinte anos, dando gosto a revisitação. Obra aparentemente simples, mas de uma densidade psicológica enorme e demonstrativa da capacidade de Zweig de analisar as mais profundas emoções e sentimentos do ser humano.

Em Agosto de 1940 Stefan Zweig e a sua mulher Lotte Altmann viajaram de Nova Iorque para o Brasil pela primeira vez, regressando pouco tempo depois para residirem nesse país de que Zweig tanto gostou, tendo mesmo sido o escritor a dar-lhe o epíteto que lhe ficou colado: «Brasil, país do futuro».

Stefan Zweig era um austríaco de ascendência judaica, nascido em Viena em 1881 no seio de uma família de posses. A sua obra variada e extensa é testemunho do seu amor pela dignidade humana, do seu desejo de uma sociedade respeitadora da Liberdade, da noção da necessidade da Cultura para o desenvolvimento humano, bem como da sua admiração pelos autores das mais diversas artes.

Na obra «Momentos Estelares da Humanidade» Stefan Zweig aborda, em catorze episódios, aqueles que considerava serem dos momentos mais importantes da humanidade, numa escolha assim justificada:

«O que normalmente se desenrola devagar, de maneira sucessiva ou sincrónica, comprime-se num único instante que determina e decide tudo […] Procuro aqui evocar, a partir das mais variadas épocas e regiões, alguns desses momentos estelares; chamei-lhes assim porque, resplandecentes e inalteráveis como estrelas, brilham para além da noite do efémero.»

Nos dias de hoje, em que se elege como fundamental o que é tantas vezes ligeiro e inconsequente, impressionará o que Stefan Zwieg considerava verdadeiramente fundamental, como sejam a conquista de Bizâncio pelos turcos, a descoberta do oceano Pacífico por Núñes de Balboa, como surgiu o hino A Marselhesa, a história de amor que inspirou Goethe para a «Elegia de Marienbad» ou mesmo a crise que levou Handel a compor o seu «Messias», entre outros.


De entre as numerosas biografias que Stefan Zweig escreveu, e não esquecendo a de Romain Rolland, saliento a obra «Triunfo e Tragédia de Erasmo de Roterdão» sobre Erasmo de Roterdão, grande defensor do acesso à cultura: «Aquele que sabe sugerir aos homens um novo ideal, a fé no progresso moral da humanidade, torna-se o guia dos seus contemporâneos: Erasmo foi esse homem.». Publicada em 1934, anunciava os temores do escritor perante os totalitarismos que surgiam na Europa que todos hoje sabemos iriam em breve envolver o continente e a seguir o mundo inteiro numa tragédia inominável, consequência dos fanatismos contrários à tolerância e ao diálogo.

Nesse mesmo ano de 1934 Stefan Zweig exilou-se da Áustria prevendo o que se iria seguir após Hitler ter chegado ao poder na Alemanha no ano anterior com as suas políticas anti-semitas. Apesar de a religião não ter na sua vida um papel central e assumindo que apenas por acidente de nascimento os pais eram judeus, Stefan Zweig sabia que as suas origens e o humanismo e pacifismo que adoptava não seriam tolerados pela barbárie que se afirmava.

Sendo nessa altura já um dos escritores mais famosos e vendidos do mundo, passou a viver em Inglaterra, tendo obtido a cidadania britânica. Na sequência da invasão nazi da Europa, Zweig e a sua mulher foram para os Estados Unidos em 1940 estabelecendo-se em Nova Iorque por pouco tempo, dado que após a viagem ao Brasil em Agosto desse mesmo ano, decidiram estabelecer-se no país sul-americano em Petrópolis, perto do Rio de Janeiro. Já no Brasil escreveu a obra autobiográfica «O Mundo que Eu Vi» em que se mostra nostálgico perante um mundo e uma Europa desaparecida com a Primeira Guerra Mundial.


Face à hecatombe da Grande Guerra que não suportavam ver, Stefan Zweig e a sua mulher Lotte decidiram pôr termo à vida em 1942 com uma nota de despedida em que o escritor se explicou: «Deixo saudações a todos os meus amigos: talvez vivam para ver o nascer do sol depois desta longa noite. Eu, mais impaciente, vou-me embora antes deles».

George Steiner, que há pouco tempo nos deixou, ensinou-nos esta necessidade de luta constante pela cultura, pelo direito ao belo, pela complexidade das relações e pelo conhecimento e História, algo que se torna tão importante nos dias de hoje. Se há alguém por quem devemos ter respeito será por quem não suporta viver num mundo inimigo da cultura onde o materialismo e o fanatismo imperem. Por isso relembrar pessoas com Stefan Zweig, é tão importante.
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Março de 2021

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