Eu sei que é difícil, para quem nunca teve um animal de estimação, perceber a relação que se pode estabelecer com esse animal, por vezes até considerada como ridícula. Não se trata aqui de teorizar sobre eventuais direitos dos animais, que nos dias de hoje muitos, entre os quais não me incluo, até defendem que deveriam ser constitucionais, mas de como um animal de estimação pode fazer parte da nossa vida e dela ser mesmo uma parte importante.
Numa esquina da vida encontrei um cão muito especial (todos o serão para alguém, claro) que me fez mudar a maneira como olho para os animais de estimação. A adaptação mútua não foi imediata mas, a partir de certa altura, a relação que se foi construindo entre nós era verdadeiramente notável. Claro que o facto de se tratar de um golden retriever, raça conhecida pela sua inteligência e grande capacidade afectiva, certamente ajudou. O seu olhar meigo, bem como a alegria com que partilhava os passeios pela rua compensava largamente aquilo que tantas vezes mais parecia disparates, como morder os tubérculos de plantas em vasos. Ele lá saberia porque o fazia, tal como comer a relva do jardim. Já pegar em meias ou chinelos velhos e ir para um canto roer os troféus tinha apenas graça. Mas era com grande carinho e cuidado que muitas vezes, apenas a madrugada ia a meio, metia o focinho entre a almofada e os lençóis para me acordar e pedir para lhe fazer umas festas ou mesmo levantar e ir até à rua. Aí era verdadeiramente um companheiro de brincadeira. Agradecia satisfeito todas as festas que os transeuntes lhe faziam cativados pelo seu aspecto simpático e grande tamanho. Mesmo crianças pequenas ficavam deliciadas por lhes deixar fazer festas e dar abraços sem nunca dar sinal de enfado.
A certa altura os anos começaram a pesar-lhe. Os passeios foram diminuindo de distância, até praticamente se reduzirem a sair para as suas necessidades e regressar. Também passou a não poder passar a noite no exterior porque sentia frio. Houve um momento em que passou a ter que ser medicado, dado que as costas lhe doíam e tinha notória dificuldade em levantar as patas traseiras ao acordar. Mas, depois de ajudado, ficava outra vez como novo e pronto para enfrentar o dia como sempre, adorado como companhia perfeita por toda a família. Muitas vezes, quando sentado na cadeira com o computador sobre os joelhos compunha estes textos ou outra coisa qualquer, o Simão vinha colocar o focinho ao lado do écran a espreitar o que eu estaria a fazer e só com o olhar afectuoso era capaz de transmitir o que queria.
Durante anos toda a vizinhança me acompanhava com um olhar sorridente quando passeava a cachorro pela rua, dando-me a impressão de que consideravam o cão como uma extensão do meu próprio ser. E, provavelmente, naqueles momentos não andariam longe da verdade, só que não saberia dizer quem seria o prolongamento de quem…
O Simão decidiu partir, resultado da idade avançada, mas não deixa triste quem com ele partilhou a vida, já que perduram as memórias felizes de tantos momentos de companheirismo, olhares de afecto e também de brincadeiras.
Sim, eu sei que haverá quem ache ridículo dedicar uma crónica a um cachorro, mas a esses sempre poderei lembrar Álvaro de Campos quando escrevia que «todas as cartas de amor são ridículas”.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Julho de 2023
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