segunda-feira, 10 de julho de 2023

O POPULISMO ANDA POR AÍ


O que distingue a democracia de outros regimes políticos é que o poder assenta na vontade do povo. Claro que a representatividade introduz um filtro ao exercício desse poder que, em consequência, é praticado em nome do povo através de instituições que, essas sim, derivam do escrutínio popular através de eleições livres e democráticas.

Mas não é por isso que muitos políticos deixam de estar com “o povo” ou “as pessoas” como agora é moda dizer, na ponta da língua, ainda que, muitas vezes, o seu interesse directo esteja bem longe dos interesses e preocupações do tal povo. Quererá isso dizer que a maioria dos políticos é apenas populista? Não o creio, mas a distinção não é fácil, até porque cair na tentação do populismo é muito mais fácil do que possa parecer à primeira vista.

Será então conveniente dispormos de um critério mais ou menos seguro que nos diga quando é que um político é populista, até porque se trata de uma acusação muito frequente e tida como sendo de grande gravidade, mesmo como uma abominação política. Quando um político se coloca na posição de defesa do “Povo” contra os interesses de uma ou várias elites, aí está o populismo em acção. O populismo não apresenta uma definição de soluções político/ideológicas para os problemas, mas apenas uma utilização demagógica de questões reais, colocando sectores sociais inteiros contra os que “estão lá em cima”, os que têm lucros à custa da pobreza alheia, os que “recebem subsídios sem trabalhar”, etc. Na realidade, o populismo nem será verdadeiramente uma ideologia, mais parecendo apenas um processo fácil de conseguir apoios populares que permitam chegar ao poder; claro que é  frequente que, depois de alcançado esse objectivo, se continue a utilizar o populismo para manter as populações no engano através da utilização dos meios que a comunicação proporciona.

Todos nós conhecemos casos destes, seja noutras partes do mundo, seja em Portugal. E nem se trata de uma questão de esquerda ou direita: basta observar os casos que a História nos oferece na América Central ou do Sul para verificar isso, normalmente com uma característica em comum: elevada inflação.

E é a inflação que está, infelizm


ente, na origem de uma tomada de posição recente de alguns dos nossos dirigentes políticos com maiores responsabilidades. Nos últimos dias todos pudemos ver, ouvir e ler o Presidente da República, o Primeiro Ministro e o líder do PSD, além de outos, utilizarem um populismo que se lhes julgava impensável pelas altas funções que exercem, para atacar afirmações produzidas pela Presidente do BCE, Christine Lagarde. O Primeiro Ministro chegou mesmo a tentar desenvolver uma nova teoria económica, atribuindo as responsabilidades da inflação aos elevados lucros de empresas. Mas todos se atiraram ao BCE como sendo responsável pela subida de juros, que é sabido ser a única solução conhecida para controlar a subida excessiva da inflação, elegendo o Banco Central Europeu como inimigo do povo, por desejar o mal das pessoas comuns.

Nenhum destes responsáveis deveria seguir este caminho populista. Pela simples razão de que todos sabem muito bem que a inflação cresceu à custa da demasiada liquidez na economia que se deve precisamente aos baixos juros e à continuidade demasiado prolongada no tempo de apoio a alguns países com elevada dívida, como é o caso de Portugal. E todos eles sabem que os países do Euro, entre os quais Portugal se inclui, abdicaram de soberania no que respeita às taxas de juro e de câmbio. E que essa abdicação teve como paga os milhares de milhões de euros que temos recebido da União Europeia, cujo destino é ditado precisamente pelos nossos governantes, embora os resultados não se vejam muito claramente, por assim dizer. E também sabem que não era por estar em Portugal que as suas afirmações deixavam de se dirigir a todos os países do Euro e não especificamente a Portugal. Como sabem muito bem que outras acusações que fizeram a Lagarde não correspondiam verdadeiramente ao que ela disse.

Todos temos de estar cada vez mais atentos relativamente ao que políticos afirmam, para que não nos deixemos enganar pelo populismo, venha ele de onde vier. Porque se a Democracia tem grandes vantagens sobre outros regimes ao apoiar-se sobre a Liberdade, essa é também a sua maior fragilidade, por permitir que a tentem minar por dentro. Cabe a todos nós exercer a nossa cidadania e assim desmontar todos os populismos, mesmo que venham de democratas que por vezes cedem a essa tentação de criticar quaisquer elites só para dizer ao povo o que este gostará de ouvir nesse momento, ainda que a verdade ande bem longe.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Julho de 2023

Imagens recolhidas na internet

 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

ADEUS, SIMÃO, ATÉ SEMPRE AMIGO FIEL

 

Eu sei que é difícil, para quem nunca teve um animal de estimação, perceber a relação que se pode estabelecer com esse animal, por vezes até considerada como ridícula. Não se trata aqui de teorizar sobre eventuais direitos dos animais, que nos dias de hoje muitos, entre os quais não me incluo, até defendem que deveriam ser constitucionais, mas de como um animal de estimação pode fazer parte da nossa vida e dela ser mesmo uma parte importante.


Numa esquina da vida encontrei um cão muito especial (todos o serão para alguém, claro) que me fez mudar a maneira como olho para os animais de estimação. A adaptação mútua não foi imediata mas, a partir de certa altura, a relação que se foi construindo entre nós era verdadeiramente notável. Claro que o facto de se tratar de um golden retriever, raça conhecida pela sua inteligência e grande capacidade afectiva, certamente ajudou. O seu olhar meigo, bem como a alegria com que partilhava os passeios pela rua compensava largamente aquilo que tantas vezes mais parecia disparates, como morder os tubérculos de plantas em vasos. Ele lá saberia porque o fazia, tal como comer a relva do jardim. Já pegar em meias ou chinelos velhos e ir para um canto roer os troféus tinha apenas graça. Mas era com grande carinho e cuidado que muitas vezes, apenas a madrugada ia a meio, metia o focinho entre a almofada e os lençóis para me acordar e pedir para lhe fazer umas festas ou mesmo levantar e ir até à rua. Aí era verdadeiramente um companheiro de brincadeira. Agradecia satisfeito todas as festas que os transeuntes lhe faziam cativados pelo seu aspecto simpático e grande tamanho. Mesmo crianças pequenas ficavam deliciadas por lhes deixar fazer festas e dar abraços sem nunca dar sinal de enfado.


A certa altura os anos começaram a pesar-lhe. Os passeios foram diminuindo de distância, até praticamente se reduzirem a sair para as suas necessidades e regressar. Também passou a não poder passar a noite no exterior porque sentia frio. Houve um momento em que passou a ter que ser medicado, dado que as costas lhe doíam e tinha notória dificuldade em levantar as patas traseiras ao acordar. Mas, depois de ajudado, ficava outra vez como novo e pronto para enfrentar o dia como sempre, adorado como companhia perfeita por toda a família. Muitas vezes, quando sentado na cadeira com o computador sobre os joelhos compunha estes textos ou outra coisa qualquer, o Simão vinha colocar o focinho ao lado do écran a espreitar o que eu estaria a fazer e só com o olhar afectuoso era capaz de transmitir o que queria.

Durante anos toda a vizinhança me acompanhava com um olhar sorridente quando passeava a cachorro pela rua, dando-me a impressão de que consideravam o cão como uma extensão do meu próprio ser. E, provavelmente, naqueles momentos não andariam longe da verdade, só que não saberia dizer quem seria o prolongamento de quem…

O Simão decidiu partir, resultado da idade avançada, mas não deixa triste quem com ele partilhou a vida, já que perduram as memórias felizes de tantos momentos de companheirismo, olhares de afecto e também de brincadeiras.

Sim, eu sei que haverá quem ache ridículo dedicar uma crónica a um cachorro, mas a esses sempre poderei lembrar Álvaro de Campos quando escrevia que «todas as cartas de amor são ridículas”.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Julho de 2023

Imagens do autor

segunda-feira, 26 de junho de 2023

A RESILIÊNCIA (REAL) DA SOCIEDADE PORTUGUESA

 


Temos assistido recentemente a fenómenos de alterações sociais que, por se darem de forma gradual e não instantânea como as revoluções, nem por isso deixam de ser profundas e de, mais cedo ou mais tarde, se manifestarem com uma força que não se imaginaria possível.

As políticas educativas dos últimos anos têm tido consequências à primeira vista imprevisíveis, dado que os seus responsáveis estão sempre a defender a escola pública. Na realidade, as lutas dos professores têm trazido à tona situações laborais insustentáveis pela sua profundidade e duração. Como consequência, a desmotivação dessa classe profissional, com um papel crucial em qualquer sociedade desenvolvida, é uma evidência e acarreta problemas graves no que verdadeiramente importa em qualquer sistema educativo, que é a formação dos alunos. A burocratização da função educativa, bem como a permanente desautorização dos professores diminuem-lhes gravemente a capacidade de ensino, transformando-os em funcionários de um sistema desumanizado permanentemente em conflito. Quem sofre mais são os alunos mais carenciados, que vêem o sistema ser cada vez menos uma escada de ascensão social, potenciando o crescimento das desigualdades, sempre injustas. O fim dos contratos de associação veio ajudar, eliminando a possibilidade de alunos com menos posses acederem a um ensino diferenciado e de qualidade. Só para dar um exemplo, aqui ao lado em Espanha, como em muitos outros países europeus, os contratos de associação mantêm-se, mesmo com governos muito à esquerda. Se havia exageros ou incumprimentos, isso resolvia-se com a Justiça, sem deitar a água fora com o bebé, puramente por motivos ideológicos. Todos sabemos dos defeitos dos rankings escolares que têm dificuldade em integrar os problemas sociais locais. Mas há uma evidência que ressalta deles e de que é impossível fugir, por mais defeitos que tenham: a variação ao longo dos últimos anos que consiste na descida sistemática e contínua das escolas públicas dos lugares cimeiros. Nas primeiras quarenta escolas não aparece uma única pública! Lembram-se de que há uns anos a Escola Secundária D. Maria aqui em Coimbra era sistematicamente uma das primeiras? Onde já vai esse tempo. Como resultado disto tudo, os colégios privados nascem e desenvolvem-se sem mãos a medir, com milhares de pais a fazerem sacrifícios enormes para poderem pagar as propinas, preocupados com o futuro dos seus filhos.


Tal como tem vindo a acontecer no Serviço Nacional de Saúde. Da falta de médicos de família às maternidades, passando pelos atrasos nas consultas e cirurgias, parece não haver maneira de resolver os problemas gravíssimos do SNS. E não é certamente por falta de dinheiro, mas por incompetência e incapacidade política de fazer reformas. Nomear uns gestores nacionais para o SNS pode resolver uns problemas pontuais e ir iludindo o inevitável, mas quem tem a responsabilidade última é o Governo. E não estou a esquecer as ilhas de excelência do SNS, que as tem, nem a importância e significado do SNS para os portugueses em geral. Mas o acesso rápido e universal à prestação dos serviços é essencial para a sua eficácia. Também no SNS se assiste à fuga por parte de quem tem possibilidade financeira para o fazer, mesmo com grandes sacrifícios; a crescente subscrição de seguros privados de saúde, que já se conta por vários milhões, bem como a proliferação de hospitais privados é a prova disso mesmo. E como é que se compreende que o Governo tenha acabado com Parcerias Publico Privadas que saíam mais baratas ao Estado e prestavam cuidados de saúde de mais qualidade do que acontece actualmente com gestão pública, como é publico e notório, por exemplo, em Braga e em Loures?

A pressão ideológica colocada pelo Governo sobre estas áreas de governação tem como efeito um reequilíbrio praticado pelos cidadãos que ao passarem para os serviços oferecidos pelos sectores privados, embora à sua própria custa, estão também a baixar a pressão sobre os serviços estatais. Até poderia ser positivo se isso significasse uma descida da despesa estatal, mas incompreensivelmente tal não acontece. O que faz dos portugueses dos cidadãos que mais despesa têm com cuidados de saúde na Europa. Mas a resiliência da nossa sociedade perante a pressão estatal é que se torna verdadeiramente impressionante.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 Junho 2023

Imagens recolhidas na internet