Assim se referiu Camões à descendência de D. João I e D. Filipa de Lencastre e não há razões para crer que a Infanta D. Isabel não estivesse incluída na mente do autor na estância 50 do Canto IV dos Lusíadas.
Contudo, é altamente provável que, mesmo que o leitor faça um esforço de memória não se recorde de qualquer menção à Infanta D. Isabel, quer na História que aprendeu nos bancos da Escola, quer na literatura comum. Tal obliteração histórica será devida essencialmente aos cronistas da época, mas também a uma ideia muito generalizada de pouca importância da Mulher na sociedade da Idade Média. Esse esquecimento só há pouco tempo começou a ser ultrapassado com estudos dirigidos ao estudo da vida da Mulher superior e importantíssima no seu tempo que foi a Infanta D. Isabel, posteriormente Duquesa da Borgonha que no seu tempo era mesmo conhecida nas cortes europeias como “A Grande Dama”.
Muito por influência de sua Mãe, a Rainha D. Filipa de Lencastre que, de Inglaterra trouxe costumes, mas também cultura e exigência no comportamento dos membros da Realeza, todos os Infantes de D. João I receberam uma educação esmerada, invulgar para o seu tempo, não tendo D. Isabel sido excepção. Até aos trinta e dois anos, Isabel foi Infanta, dado que só nessa altura ficou livre para casar, depois de o irmão e futuro Rei D. Duarte ter casado pelo seu lado. Com a morte de sua Mãe D. Filipa, Isabel herdou a “Casa da Rainha” por inteiro, algo que por si só constituiu uma novidade, por vontade de sua Mãe ao morrer, mas também por influência de seu irmão Pedro, que seria Duque de Coimbra após a conquista de Ceuta. E a educação que teve, bem como a experiência do governo dos domínios e do pessoal dessa importante Casa haveriam de a habilitar para a sua acção na fase seguinte da sua vida.
Com o seu casamento, em 1430, com Filipe III (o Bom), Duque da Borgonha, teve início a segunda fase da sua vida, que iria durar quarenta e dois anos. Durante a negociação do casamento o Duque enviou uma embaixada a Portugal, incluindo o pintor Jan van Eyck encarregado de pintar o retrato mais fiel possível de D. Isabel. As informações sobre a Infanta de Portugal e o retrato deixaram o Duque completamente satisfeito, pelo que se tratou logo do enlace. Era o terceiro casamento do Duque e deste casamento nasceram três filhos de que apenas o terceiro, Carlos o Temerário, chegou à fase adulta. Data dessa altura a criação da célebre ordem de cavalaria “Tosão de Ouro” criada por Filipe III em homenagem a Isabel.
A corte do Duque da Borgonha não ficava atrás das cortes régias do seu tempo, quer em poderio, quer em riqueza. De facto, o Duque da Borgonha era também conde da Flandres (que o transformava no homem provavelmente mais rico do seu tempo), Artois, paladino de Namur, senhor de Salines e de Malines.
Com a sua educação refinada, Isabel integrou-se perfeitamente na Corte, sendo uma mecenas das artes e rodeando-se de artistas. Mas Isabel não se ficou por aí, muito antes pelo contrário. As suas capacidades de governante foram reconhecidas em pleno pelo seu marido, que tomou mesmo, nalgumas alturas, a decisão inédita de lhe entregar por completo a governação do ducado, na sua ausência em campanhas militares. Foram as célebres “delegações de poder” outorgadas por Filipe a Isabel que lhe colocaram nas mãos responsabilidades de governar o ducado nos aspectos financeiros, judiciais e sociais, mas também de organização militar e respectivo financiamento. O papel de Isabel foi ainda importantíssimo em diversas Conferências de Paz em que cumpriu brilhantemente o papel de Embaixadora do Ducado.
Após a guerra civil verificada em Portugal da qual resultou a morte do seu irmão D. Pedro duque de Coimbra em Alfarrobeira, Isabel interveio com o envio de uma delegação a fim de conseguir um túmulo digno para D. Pedro, para além de acolher os três filhos deste na sua corte e de lhes proporcionar carreiras condicentes com o seu nascimento.
D. Isabel, quer no papel de Infanta de Portugal, quer no de Duquesa da Borgonha não deixou certamente de ser uma mulher do seu tempo, mas provou que mesmo nessa altura às mulheres não estava destinado apenas um papel secundário na sociedade medieval. Claro que o ambiente em que nasceu, a educação recebida e a personalidade própria ditaram aquilo que veio a ser na vida. E D. Isabel conseguiu ser não apenas uma das mulheres mais importantes do seu tempo, mas uma das personalidades mais notórias e fascinantes do seu tempo, independentemente do seu sexo. Fez parte da Ínclita Geração e bem merece ser assim conhecida por todos nós.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Abril de 2024
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