Dos vários significados da palavra “público”, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa coordenado por José Pedro Machado aponta estes: “pertencente ao povo”; “que diz respeito ao governo geral do país”; “que é do domínio de todos”.
É este, de facto, o significado que geralmente é atribuído à palavra “público”, o que não significa que seja tido em conta por todos.
Existe mesmo a sensação de que os portugueses têm um convívio difícil com este conceito, parecendo mais estarem convencidos de que o que é público é para ser tomado pelo primeiro que de tal for capaz.
Deverão existir razões históricas para que tantos portugueses tenham esta estranha relação com o bem público, e, em geral, com o Estado. A nossa História é muito antiga de séculos, mas é fértil em levas sucessivas de emigrações que alteraram profundamente a constituição na nossa sociedade e a deixaram quase sempre mais pobre. O poder central sempre foi exercido de uma forma que levava os portugueses a serem desconfiados de quem os governava e lhes levava os impostos para pagar despesas que não se reflectiam em melhorias da sua vida. Há duzentos anos, o país foi varrido por invasões francesas que deixaram o povo arrasado e faminto. Logo a seguir, as lutas da Guerra Civil, em vez de permitirem recuperação económica, atrasaram ainda mais a nossa pobre economia. A revolução industrial veio fraca e a más horas. O fim da Monarquia e a Primeira República afastaram ainda mais o povo dos políticos que nos desgovernavam. Por exemplo, Rafael Bordalo Pinheiro caricaturava nesse tempo a política como uma porca a alimentar muitos bácoros. A seguir vieram quase cinquenta anos de um regime autoritário e anti-liberal, em que os “ungidos” do regime sabiam o que era bom para todos, restando ao povo obedecer.
Todas estas razões, e certamente muitas mais, criaram entre os portugueses uma desconfiança perante o Estado, nas suas diversas formas, que se traduz no termo com designa vulgarmente os governantes: “ELES”.
Esta atitude generalizada traduz-se igualmente na visão do que é público e que leva muitos a tomar para si o que é ou devia ser de todos.
Fazem-no, aliás, todos os dias e das mais diversas formas.
A corrupção é talvez o traço mais grave dessa atitude, porque se traduz num pesado imposto que todos temos que pagar. O Código Penal coloca hoje nesta categoria muitas atitudes a que os portugueses estão habituados desde sempre, e que ainda não estão interiorizadas como crimes. Veja-o o caso do tráfico de influências, tido como simples ajuda entre amigos, tão “natural”.
Mas há muitas outras atitudes do dia-a-dia que denunciam este nosso comportamento e que, eventualmente por lidarmos quotidianamente com elas, quase não damos pela sua existência.
Quando vemos ruas em que os passeios estão ocupados por carros estacionados, estamos perante um exemplo dessa atitude. O passeio é de todos e destina-se aos peões. Não faz sentido que estes tenham que ir pelo meio da rua a fugir dos automóveis e muitas vezes a levar com água e lama, só porque o comodismo de uns tantos automobilistas os leva a apropriar-se do que é de todos.
A noção de que o dinheiro com que lidam é sagrado, porque vem dos impostos (um sacrifício de todos os cidadãos), também é demasiadas vezes ignorada por quem, pelas suas funções, tem que gerir dinheiros públicos e acha que eles estão ali para gastar como entende.
O grande problema (de carácter quase esquizofrénico) dos dias de hoje é que os portugueses continuam a referir-se aos representantes eleitos como “eles”, tendo-se disseminado a ideia de que existe uma justiça para poderosos e outra para pobres. Em consequência, “eles” que são todos iguais que se arranjem, enquanto nós por cá tratamos da nossa vidinha como pudermos.
Aprender a ter respeito por aquilo que é público, como sendo de todos, é muito mais do que uma atitude cívica; é essencial para a saúde da sociedade e mesmo para a efectiva consolidação do regime.
Publicado no Diário de Coimbra em 23 de Novembro de 2009