Muitos leitores destas linhas lembrar-se-ão certamente de um filme de 1964 de Stanley Kubrick, aliás um dos melhores filmes do realizador, que abordou o clima da Guerra Fria e inerente e perigoso equilíbrio baseado na ameaça nuclear bi-lateral.
Trata-se de uma comédia negra, em que sobressaem as três interpretações de Peter Sellers, para além de outros excelentes actores. Dizem os especialistas que Stanley Kubrick começou por abordar o romance «Alerta Vermelho» de Peter George como um filme sério, mas que depressa mudou o registo atendendo ao caricato da maioria das situações, embora baseadas numa realidade que pareceria impossível de acontecer. No filme, um general americano convence-se de que os soviéticos estão prestes a atacar os americanos. E decide bombardear uma cidade russa através do envio de um avião com bomba nuclear. Descoberto o incidente, os governantes dos dois lados tentam impedir o desastre nuclear, mas a tragédia é que ambas as potências se haviam dotado de sistemas tecnológicos independentes de comando humano, prontos a lançar um ataque nuclear maciço, perante um ataque do outro lado. O filme está repleto de cenas satíricas num ambiente de total insanidade em que parece que os únicos intervenientes com alguma sensatez são os dois líderes políticos máximos de um e outro lado e vale sempre a pena ser revisto.
Mas acontece, por vezes, que a realidade consegue ultrapassar a ficção mais delirante. E estamos neste momento a viver um momento de extrema gravidade e perigo extremo, dada a atitude de um líder político de um país possuidor de um enorme arsenal nuclear que decidiu usá-lo, para já, como arma psicológica de apoio à invasão de um país independente e anexação de territórios. Tudo o que Putin tem feito desde que em Fevereiro passado iniciou a invasão militar da Ucrânia faz lembrar as insanidades do filme de Kubrick. Os ditos «referendos» nos territórios ucranianos sob o domínio militar russo, condenados e considerados sem qualquer valor legal por quase todos os países do mundo e mesmo pela própria ONU fazem ainda lembrar as anexações de Hitler antes do eclodir da Segunda Guerra Mundial. As explosões submarinas dos gasodutos do Báltico são apenas mais um passo na guerra que Putin quer travar com todo o Ocidente cuja cultura liberal odeia, a começar pela Europa com as suas liberdades políticas, sociais e económicas. Tal como o general Jack D. Ripper se convenceu de que os «comunas» queriam destruir a América por dentro, o antigo chefe dos espiões soviéticos na Alemanha Oriental que hoje governa a Rússia está convencido de que os «decadentes liberais» do Ocidente não pretendem senão destruir a civilização que quer para o seu país e para o mundo. E, como se viu na semana passada, tem o apoio verdadeiramente inacreditável (ou se calhar, talvez não) do Patriarca Kirill de Moscovo, líder da Igreja Ortodoxa Russa, que exortou os russos a irem «corajosamente» para a guerra na Ucrânia, prometendo aos que morrerem que «entrarão no reino de Deus, garantindo a própria glória e vida eterna». O conselheiro Dr. Estranhoamor não diria melhor, enquanto certamente levantaria automaticamente o braço direito.
A cerimónia patética da passada sexta-feira da entrada de quatro províncias ucranianas na Federação Russa (ia dizer União Soviética, nem sei porquê) ultrapassou tudo o que Kubrick imaginou para o seu filme delirante e deverá constar nos anais da História ao lado da assinatura do inesquecível Pacto Molotov-Ribbentrop. Putin imagina-se um sucessor dos czares russos, mas é apenas mais um ditadorzeco que, em vez de trabalhar para conseguir desenvolvimento e bem-estar para os seus cidadãos, pretende ter um grande país que cresce pelo poderio militar e subjugação dos povos, os seus e os vizinhos. Terão de ser os russos a acabar de vez com esta loucura.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Outubro de 2022
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