segunda-feira, 3 de outubro de 2022

O novo Dr. Estranhoamor

 


Muitos leitores destas linhas lembrar-se-ão certamente de um filme de 1964 de Stanley Kubrick, aliás um dos melhores filmes do realizador, que abordou o clima da Guerra Fria e inerente e perigoso equilíbrio baseado na ameaça nuclear bi-lateral.

Trata-se de uma comédia negra, em que sobressaem as três interpretações de Peter Sellers, para além de outros excelentes actores. Dizem os especialistas que Stanley Kubrick começou por abordar o romance «Alerta Vermelho» de Peter George como um filme sério, mas que depressa mudou o registo atendendo ao caricato da maioria das situações, embora baseadas numa realidade que pareceria impossível de acontecer. No filme, um general americano convence-se de que os soviéticos estão prestes a atacar os americanos. E decide bombardear uma cidade russa através do envio de um avião com bomba nuclear. Descoberto o incidente, os governantes dos dois lados tentam impedir o desastre nuclear, mas a tragédia é que ambas as potências se haviam dotado de sistemas tecnológicos independentes de comando humano, prontos a lançar um ataque nuclear maciço, perante um ataque do outro lado. O filme está repleto de cenas satíricas num ambiente de total insanidade em que parece que os únicos intervenientes com alguma sensatez são os dois líderes políticos máximos de um e outro lado e vale sempre a pena ser revisto.

Mas acontece, por vezes, que a realidade consegue ultrapassar a ficção mais delirante. E estamos neste momento a viver um momento de extrema gravidade e perigo extremo, dada a atitude de um líder político de um país possuidor de um enorme arsenal nuclear que decidiu usá-lo, para já, como arma psicológica de apoio à invasão de um país independente e anexação de territórios. Tudo o que Putin tem feito desde que em Fevereiro passado iniciou a invasão militar da Ucrânia faz lembrar as insanidades do filme de Kubrick. Os ditos «referendos» nos territórios ucranianos sob o domínio militar russo, condenados e considerados sem qualquer valor legal por quase todos os países do mundo e mesmo pela própria ONU fazem ainda lembrar as anexações de Hitler antes do eclodir da Segunda Guerra Mundial. As explosões submarinas dos gasodutos do Báltico são apenas mais um passo na guerra que Putin quer travar com todo o Ocidente cuja cultura liberal odeia, a começar pela Europa com as suas liberdades políticas, sociais e económicas. Tal como o general Jack D. Ripper se convenceu de que os «comunas» queriam destruir a América por dentro, o antigo chefe dos espiões soviéticos na Alemanha Oriental que hoje governa a Rússia está convencido de que os «decadentes liberais» do Ocidente não pretendem senão destruir a civilização que quer para o seu país e para o mundo. E, como se viu na semana passada, tem o apoio verdadeiramente inacreditável (ou se calhar, talvez não) do Patriarca Kirill de Moscovo, líder da Igreja Ortodoxa Russa, que exortou os russos a irem «corajosamente» para a guerra na Ucrânia, prometendo aos que morrerem que «entrarão no reino de Deus, garantindo a própria glória e vida eterna». O conselheiro Dr. Estranhoamor não diria melhor, enquanto certamente levantaria automaticamente o braço direito.


A cerimónia patética da passada sexta-feira da entrada de quatro províncias ucranianas na Federação Russa (ia dizer União Soviética, nem sei porquê) ultrapassou tudo o que Kubrick imaginou para o seu filme delirante e deverá constar nos anais da História ao lado da assinatura do inesquecível Pacto Molotov-Ribbentrop. Putin imagina-se um sucessor dos czares russos, mas é apenas mais um ditadorzeco que, em vez de trabalhar para conseguir desenvolvimento e bem-estar para os seus cidadãos, pretende ter um grande país que cresce pelo poderio militar e subjugação dos povos, os seus e os vizinhos. Terão de ser os russos a acabar de vez com esta loucura.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Outubro de 2022

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Realidade e contos de fadas

 


Pode parecer anacrónico, em pleno século XXI abordar a questão da Monarquia em Portugal mas a morte da Rainha Isabel II e toda a envolvência política e mediática que a envolveu justificam, ainda que de forma simples, alguma ponderação sobre o assunto. Deixo de lado as considerações sobre casamentos, divórcios, vestidos, fardas e jóias que enchem as páginas de revistas, jornais, mas que são supérfluas perante o essencial.

É interessante que, entre os meus amigos pessoais, haja defensores da monarquia com diferentes opções políticas, uns de esquerda e outros de direita. Significa isto que o que está em questão relativamente à monarquia não é o regime, dado que a democracia é garantida desde que as monarquias passaram a ser constitucionais. Também não é o desenvolvimento económico ou social que está em causa, bastando para tal recordar que países como a Noruega, a Suécia, os Países Baixos, a Espanha ou a Bélgica, para além do reino Unido, têm monarquias no cume dos seus sistemas políticos.

A Rainha Isabel II é uma personagem fascinante que representa boa parte do sec. XX, embora tenha vivido ainda mais de vinte anos neste século. A excepcional duração do seu reinado foi razão para que tenha convivido com quinze primeiros-ministros britânicos desde Winston Churchill até à actual Liz Truss que ainda ninguém conhece, para além dos inúmeros líderes dos diversos países. No que a Portugal diz respeito, conheceu desde Salazar e Craveiro Lopes até Ramalho Eanes e Marcelo Rebelo de Sousa, só para dar o nosso exemplo.

Um dos aspectos que nas últimas duas dezenas de anos mais foram discutidos no exercício soberano de Isabel II foi o da sua possível resignação a favor do filho Carlos, dada a idade da Rainha, algo que nunca fez nem podia fazer. Sem que na maior parte dos casos sequer se adivinhasse, estava-se na realidade a tocar num ponto essencial da vida de Isabel II como Rainha, mas também da própria essência da Monarquia.

Recordo que Isabel II nasceu em 1926, mas não para ser rainha. Só o foi porque em 1936 o seu tio Rei Eduardo VIII abdicou, nas circunstâncias que todos conhecemos, a favor do seu irmão que se tornou o Rei Jorge VI. Era este rei o pai de Isabel que assim, lhe veio a suceder como Isabel II pela sua morte ocorrida em 1953.

Tudo o que rodeou esta situação que levou à sua entronização em 2 de Junho de 1953 calou profundamente na sua formação pessoal e carácter que a levaram ao famoso juramento de servir o povo britânico para sempre, o que impediu que algum dia pensasse sequer em abdicar do que considerava ser o seu dever inalienável.


Mas houve ainda outra situação desconhecida de grande parte das pessoas que também terá marcado Isabel II para toda a sua vida como rainha, dado o seu simbolismo. Em momento imediatamente anterior à coroação pública, através da colocação na sua cabeça da coroa imperial de mais de um quilo de ouro e 2.868 diamantes, houve outra cerimónia levada a cabo longe da vista do público. Nessa cerimónia que vem desde os longínquos tempos medievais Isabel, sem as suas vestes reais, foi ungida com óleo sagrado, significando isso que seria rainha, não só pela herança da casa de Hanôver, mas por direito divino.

Chego assim ao ponto central da justificação da existência da Monarquia e, devo dizê-lo desde já, da razão de eu ser republicano. De facto, embora possa dizer ser hoje um leitor ávido de História, em particular da nossa rica de quase mil anos e tantos reis e rainhas de que sou admirador de uns e não tanto de outros, é a própria essência da Monarquia que aqui está em causa.

Aceito perfeitamente a existência de monarquias, mesmo nos dias de hoje, desde que seja essa a vontade expressa do povo, mas nunca por direito dinástico ou divino. E não é o facto de uma determinada personalidade nos merecer a maior admiração pela sua vida como rei ou rainha, como foi o caso de Isabel II, que ultrapassa a questão radical da razão de o ter sido por outra razão que não a escolha por quem deve ser o detentor da soberania: o povo constituído por todos, independentemente do seu nascimento, da sua riqueza ou mesmo da sua cultura. E, goste-se ou não, a realidade vai muito para além dos contos de fadas por muito apelativos que estes sejam.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Setembro de 2022

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Saudades do Império e da Guerra Fria

 


O cenário parecia perfeito para os objectivos pretendidos por Putin e estava preparado há meses. Foi em Samarcanda, no Uzebequistão que, na semana passada, decorreu a 22ª cimeira do Conselho dos Líderes dos Estados-Membros da Organização de Cooperação de Xangai (OCS). Recordo que a OCS foi fundada em 2001 por seis países asiáticos: Rússia, China, Cazaquistão, Quirquistão, Tajiquistão e Uzbequistão. Em 2017 juntaram-se-lhes a Índia e o Paquistão e, em 2021, o Irão. Entre os países membros, encontram-se dois que fazem parte do Conselho de Segurança da ONU e quatro deles são potências nucleares, se não incluirmos o Irão que, se não o é, deverá sê-lo em pouco tempo. Três deles encontram-se entre os cinco países mais populosos do mundo, sendo mesmo dois deles, a China e a Índia, os dois países do mundo com maior população. A China é a segunda maior economia do mundo e a Índia o quinto. Trata-se, portanto, embora ainda não o tenha actualmente, de uma organização com um potencial enorme para ter um papel decisivo nos destinos do mundo.

Mas Putin não regressou da Samarcanda com o que pretendia. Desde logo porque o próprio Putin não foi para a cimeira com o espírito que desejaria. A sua necessidade de força e consequente agressividade estavam claramente prejudicadas pela situação da invasão da Ucrânia nas duas últimas semanas. O contra-ataque das forças ucranianas levou a que as forças russas abandonassem dezenas de povoações, com Kharkiv à cabeça. A saída dos exércitos russos ter-se-á verificado de uma forma que mais terá parecido uma debandada, uma afronta para Putin que de imediato procedeu a novas substituições ao mais alto nível do comando das forças invasoras. E foi assim que Putin ouviu do líder indiano o que não queria. De facto, Narenda Modi disse ao líder russo que «este não é o momento para uma guerra», ao que Putin respondeu querer acabar a guerra «o mais depressa possível», acrescentando que «entende as suas preocupações» sobre a questão da Ucrânia. Já no que diz respeito à China, Putin começou por manifestar o apoio russo à política «uma China», isto é, à integração de Taiwan na China continental e continuando, disse valorizar muito a posição equilibrada dos nossos amigos chineses em relação à crise na Ucrânia». Já o presidente comunista chinês Xi Jinping declarou que «a China vai trabalhar com a Rússia para dar estabilidade e energia positiva a um mundo caótico». E aqui reside o essencial do apoio chinês às opções políticas e visão do mundo de Putin para quem tudo o que é ocidental é decadente e estará em declínio, incluindo todos os avanços civilizacionais que conhecemos como os direitos humanos, liberdades individuais e mesmo convenções internacionais.


Mas Putin está redondamente enganado quando imagina liderar ou pelo menos dirigir em parceria estratégica com a China um novo pólo asiático que se oporá ao tal Ocidente que abomina. Embora a Rússia seja o maior país do mundo, ocupando dez fusos horários, pelo seu lado a China é o país mais populoso do mundo, tem um histórico de relações difíceis com a Rússia e é já neste momento a segunda maior economia do mundo, dez vezes maior do que a russa. O famoso abraço do urso que, mais cedo ou mais tarde irá dar-se, será aqui exactamente ao contrário do que habitualmente se refere. Apesar dos seus apelos à História russa para justificar a necessidade da reconstituição do Império que já se vestiu de czarista e comunista, Putin esquece o acordo entre a URSS e a Alemanha nazi, o famoso Pacto Molotov-Ribbentrop, que acabou naquilo que todos conhecemos.

Coincidência, ou não, na mesma semana a Rússia abandonou a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, enquanto Putin acusa a Comissão Europeia de «egoísmo».


Já no «campo de batalha», como Putin chamou à Ucrânia, foram novamente descobertos centenas de corpos de pessoas chacinadas e enterradas em valas comuns pela tropa invasora russa, depois da debandada desta de Izium, à semelhança do que tem acontecido noutros locais como a tristemente famosa Bucha. Corpos cujas condições indiciam de novo a prática de tortura e assassínios de militares, mas também de civis ucranianos, incluindo mesmo crianças.

O chamado Ocidente está debaixo de fogo na Ucrânia e bem faz em apoiar este país nos seus desejos de se virar para a Europa comunitária, ajudando-o o mais possível na sua defesa contra o invasor russo. Ainda que isso signifique sacrifícios, como se está a verificar. Putin tem o sonho de reconstituir o antigo império soviético e de voltar a colocar o mundo sob a chantagem nuclear. As democracias devem perceber isso e unir-se para evitar que tal aconteça.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de Setembro de 2022

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Reforme-se o Sistema de Pensões de forma séria!


Devo começar esta crónica com uma declaração de interesse: devido à idade, também eu passei há alguns anos para a classe dos aposentados com pensão da Segurança Social. O que, se me aumenta o interesse pela matéria em causa não me impede, desde há muito, de ver o óbvio, isto é a necessidade imperiosa de fazer uma verdadeira reforma do Sistema Nacional de Pensões. E essa necessidade vem das alterações demográficas radicais da sociedade portuguesa conjugadas com o tipo de financiamento do sistema que é garantido, em cada momento, pelas contribuições dos trabalhadores e empresas onde trabalham e não pela capitalização das contribuições feitas ao longo das respectivas carreiras. É fácil de ver que, havendo cada vez mais idosos a receber pensões e cada vez menos jovens a contribuir, este sistema rapidamente se tornará insustentável, ao contrário do que certos políticos têm garantido ao longo dos anos. Se as pensões actuais estão em perigo, ainda maior problema é o das pensões dos futuros reformados que andam hoje na casa dos 40/50 anos.

Aproveito para recordar aqui que o Governo de Passos Coelho tentou mexer nas pensões e na TSU, iniciativas essas que, na minha opinião, lhe valeram a perda da maioria absoluta nas eleições seguintes e a construção de uma imagem negativa que dura até aos dias de hoje. Trata-se, portanto, de uma questão política da maior importância, mas que exige simultaneamente uma sensibilidade e respeito por diversos interesses inteiramente legítimos que as maiorias absolutas tendem a subestimar com arrogância.

Na semana passada o Governo apresentou o seu «pacote» de medidas para apoio dos cidadãos que estão a sofrer economicamente com a inflação que voltou a surgir já no ano passado e com a subida dos custos da energia. Nem adianta comentar a diminuição do IVA na electricidade que se traduz numa poupança mensal de um euro e pouco. O apoio de 125 euros dividido pelos meses que 2022 já leva também pouco contribui para minorar o acréscimo de preços na alimentação e outras despesas que já vai em 8/9% em média geral, mas em muito mais em produtos essenciais como o peixe ou a carne. Mas, atenção, este «apoio» é apenas para os actuais trabalhadores e desempregados. Para os pensionistas reservou-se outro tipo de «apoio».

E é no dito apoio aos reformados que a «a porca torce o rabo» como se costuma dizer. É sabido que a conjugação da inflação com o crescimento económico devido apenas à recuperação pós-pandemia provocaria, pela aplicação estrita da lei da actualização das rendas em vigor, um aumento excepcional em 2023, como aliás o primeiro-Ministro se fartou de anunciar quase como se fosse uma benesse do governo. Devo dizer que pessoalmente a minha curiosidade era enorme sobre qual seria o processo que o Governo utilizaria para tentar fugir às consequências sobre a sustentabilidade do sistema das Reformas. E, de facto, alguém do Governo fez as contas e ficou assustado. Muito assustado,


mesmo. Como resultado, virou-se a questão ao contrário. E os aposentados, em vez de receberem um apoio directo como os todos outros portugueses, foram presenteados com o pagamento, em Outubro deste ano, da antecipação de parte do aumento das reformas de 2023 que lhes seria sempre pago! Quase nem se acredita em tão excelente «apoio». Em consequência, a base final do montante da reforma no final de 2023 ficará mais abaixo, diminuindo para sempre o montante das reformas futuras. Volta troika que estás perdoada, apetece dizer. E não adianta vir o Governo acenar com um reforma a fazer em 2023 porque essa, que terá que haver, será certamente para cortar ainda mais nas reformas, pelo andar da carruagem da inflação e das taxas de juro. Tudo isto se parece com uma gigantesca falcatrua de que são vítimas os pensionistas, os mais indefesos por não terem quem os defenda, levada a cabo pelo Estado, precisamente quem os devia defender em primeiro lugar. O Estado que assim poupará umas centenas de milhões de euros anualmente a partir de Janeiro de 2024 é precisamente o mesmo Estado que já atirou com vários milhares de milhões para cima da transportadora aérea e de um banco privado mal vendido!

Se é inteiramente compreensível que a Lei do Sistema Nacional de Pensões seja revista em função da sua sustentabilidade, que tal seja feito de forma democrática, isto é na Assembleia da República pelos representantes do povo e não à socapa como se está a fazer. O Presidente da República foi lesto a promulgar este «pacote» e, na minha humilde opinião, andou muito mal ao autorizar este engano aos pensionistas. Porque finalmente os portugueses parecem ter aberto os olhos e, ou me engano muito, ou o Governo vai ter que arrepiar caminho nesta matéria.  

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Setembro de 2022

Imagens retiradas da internet