segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Lembrar Sá Carneiro, um político diferente



Na noite de 4 de Dezembro de 1980 encontrava-me na Base Naval do Alfeite, sendo Oficial de Dia no Comando da Flotilha de Patrulhas, por cumprir nessa altura o Serviço Militar Obrigatório na Marinha Portuguesa como Oficial da Reserva Naval. Depois do jantar encontravamo-nos três pessoas a ver a televisão na sala, eu próprio, um 1º Tenente e um Sargento quando surgiu a notícia de um acidente com um avião em Camarate, tendo morrido o primeiro-Ministro Sá Carneiro. Instantaneamente os outros dois homens levantaram-se, abraçaram-se de satisfação e literalmente saltaram pela sala fora a comemorar a notícia. Quanto a mim, restou-me sair para o exterior, absorvendo o ar frio da noite para tentar acalmar o espírito perante a trágica notícia e a cena inclassificável a que acabara de assistir.
Faltavam três dias para as eleições presidenciais em que se confrontavam os generais Ramalho Eanes que se candidatava à reeleição e Soares Carneiro, apoiado pela AD liderada por Sá Carneiro que havia vencido as eleições parlamentares pela 2ª vez com maioria absoluta dois meses antes, em 5 de Outubro. As sondagens indicavam uma muito provável vitória de Eanes, face aos restantes candidatos de que apenas Otelo Saraiva de Carvalho poderia sobressair, mas não aparecendo qualquer candidato directamente apoiado pelo PS e pelo PCP que apostavam, assim, na reeleição de Ramalho Eanes. Isto, apesar da relação tensa (para dizer o mínimo) entre Soares e Eanes e de em 1976, ainda na sequência do 25 de Novembro, os comunistas terem sido os maiores opositores de Eanes.
Com a queda do pequeno avião em Camarate, caíam também por terra as últimas esperanças da AD em obter «um Presidente, uma Maioria, um Governo» como era desejo expresso de Sá Carneiro, que corporizava aquele projecto.
O desaparecimento de Sá Carneiro no acidente de Camarate cortou uma carreira política que acabou por ser curta, mas de uma intensidade rara, mostrando como a política pode ser exercida de uma forma assumidamente disruptiva, tendo sempre em mente objectivos concretos e não aceitando situações dúbias ou mesmo falsas que pudessem colocar em questão os valores fundamentais subjacentes. Foi assim antes do 25 de Abril quando aceitou integrar as listas do partido único de então para formar a chamada «ala liberal», com um programa concreto de exigências prévias sobre liberdades individuais e de imprensa. Ao ver a impossibilidade de obter o pretendido, demitiu-se com estrondo da então Assembleia Nacional, cortando todos os laços com o regime.
Foi também assim depois do 25 de Abril, com a fundação do PPD e lutas imediatas internas e externas. Externamente, rejeitou em absoluto a hipótese de a Democracia poder ser tutelada pelos militares, bem como o domínio «popular» das esquerdas revolucionárias sobre o voto livremente expresso pelo povo em eleições livres, logo após as eleições para a Constituinte em 1975. Tal como não admitiu que a Igreja, nomeadamente através do Cardeal Patriarca, se imiscuísse na sua vida privada alinhando em campanhas sórdidas que misturavam política e religião. Internamente, viu-se permanentemente atacado, praticamente desde a fundação do partido, por vagas sucessivas de «verdadeiros social-democratas» que o acusavam de desvios «liberalizantes» ou mesmo direitistas. Desde Sá Borges, logo em 1975, até às «opções inadiáveis» em Junho de 1978 que antecederam a formação da Aliança Democrática em que, pela primeira vez, o PSD viria a aceder ao poder através da escolha democrática da maioria dos portugueses.
Sá Carneiro não foi um homem santo, nem um político perfeito e, como todos nós, muitos erros terá cometido na vida. Mas algo fez muitíssimo bem. Corporizou como poucos políticos os anseios dos portugueses, lutou com denodo pelo que acreditava, quer em oposição, quer ao exercer o poder. E viveu a vida em grande velocidade e com intensidade máxima. Só por isso merece aqui ser recordado, na passagem de 39 anos sobre o seu desaparecimento.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra, em 2 de Dezembro de 2019

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

FACTURA DE ELECTRICIDADE

A propósito dos encargos excessivos que os portugueses suportam com a electricidade, aqui fica um exemplo concreto:

Valor total a pagar : 108,63€
Dos quais,
- valor a pagar à empresa fornecedora pelo consumo feito: 59,75€  (55% do total)
- potência contratada: 23,13€
- contribuição audiovisual: 6,04€ (incluindo IVA!!!!!)
- taxas e impostos: 19,71€

Isto é uma perfeita pouca-vergonha que deve ser alterada já no OGE para 2020, diminuindo os impostos sobre a a electricidade doméstica.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

25 NOVEMBRO 75



No dia 11 de Novembro de 1975 a Assembleia Constituinte foi cercada pelo sindicato da construção civil ou, como se dizia na altura, a cintura industrial de Lisboa veio ao Parlamento tentar obter pela força aquilo que a esquerda revolucionária não tinha conseguido nas eleições de Abril, as primeiras democráticas. Antes, no dia 10 de Novembro, enquanto discursava num comício no Terreiro do Paço o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, que tinha substituído Vasco Gonçalves em Agosto, reagiu com «é só fumaça» e repetindo «o povo é sereno» perante o rebentamento de uma bomba de gás lacrimogéneo. E foi o mesmo Pinheiro de Azevedo que, no fim do sequestro do Parlamento, exclamou: «Fui sequestrado. Já duas vezes. Não gosto de ser sequestrado. É uma coisa que me chateia».
No dia 20 de Novembro o Conselho de Revolução afastou Otelo Saraiva de Carvalho da chefia da Região Militar de Lisboa, nomeando Vasco Lourenço em sua substituição. Era a continuação dos acontecimentos de Agosto em que na célebre Assembleia Geral de Tancos de 1 de Setembro Vasco Gonçalves, destituído de primeiro-ministro no dia anterior, foi igualmente afastado de Chefe de Estado Maior das Forças Armadas. O chamado Documento dos Nove apresentado em 7 de Agosto, cujo principal autor era Melo Antunes, fazia o seu caminho nas Forças Armadas e no MFA, tentando pôr cobro a um caminho de exaltação e radicalização esquerdista que todos percebiam poder descambar numa guerra civil.
Foi nessa altura que os sectores mais revolucionários perceberam que aquele momento era a última hipótese de tentarem fazer a sua “revolução socialista” à moda soviética porque a agulha do clima político estava notoriamente a mudar para o lado contrário.
Na sequência do afastamento de Otelo da Região Militar de Lisboa, log
o a 21 de Novembro, o COPCON reúne-se no Alto do Duque, recusando acatar a ordem do Conselho da Revolução. Contudo, o Regimento de Comandos exigiu ficar na dependência directa do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, abandonando a estrutura do COPCON e mais de uma centena de oficiais pára-quedistas abandonaram Tancos, deslocando-se para a Cortegaça com aviões e helicópteros. O Conselho da Revolução reiterou a decisão de nomear Vasco Lourenço e, em 24 de Novembro, o presidente da República Costa Gomes anuncia que mantém essa nomeação.
Na madrugada de 25 de Novembro, faz hoje 44 anos, as forças esquerdistas avançaram, com a ocupação das bases aéreas de Tancos, Monte Real e Montijo bem como do Estado Maior da Força Aérea por pára-quedistas, enquanto o RALIS tomava posições do aeroporto de Lisboa, na auto-estrada do Norte e no depósito de Beirolas. Em frente da Cortegaça colocou-se um navio da Armada pronto a disparar. O estúdio da RTP no Lumiar foi ocupado, bem como a 1ª Região Aérea de Monsanto. A partir daí, o presidente Costa Gomes e o grupo dos nove sob o comando de Ramalho Eanes tomaram todas as iniciativas militares necessárias para responder à sublevação. Muito importante, Costa Gomes contactou Álvaro Cunhal para proceder à desmobilização dos seus militantes nas ruas, o que foi feito, assim se mantendo a contenda apenas entre militares. Durante todo o dia as operações militares fizeram oscilar a situação para um e outro lado mas, na madrugada de 26, a situação foi finalmente estabilizada com uma acção forte dos Comandos da Amadora sobre a Polícia Militar que foi ocupada.
Em suma, os sectores esquerdistas avançaram, mas o lado militar democrático estava bem preparado para lhes tolher o passo. E foi assim que o «processo revolucionário em curso» terminou, abrindo caminho para a Democracia representativa em respeito pela vontade do povo português expressa nas urnas e em mais lado nenhum.
Como acontece muitas vezes com as revoluções, os períodos que se lhes seguem trazem consigo os perigos da radicalização, que podem anular os bons objectivos que as nortearam. Tal não sucedeu em Portugal porque, em primeiro lugar houve eleições livres para o povo escolher o caminho que queria seguir e depois porque houve portugueses de fibra que obrigaram a que essa vontade fosse respeitada.
Em tempos de oportunismos que tentam aproveitar-se da data do 25 de Novembro face ao lamentável esquecimento dos últimos anos, é bom que se saiba o que aconteceu, como aconteceu e o que significou como garantia da Democracia pluralista que hoje temos.

Publicado originalmente na edição do  Diário de Coimbra de 25 de Novembro de 2019

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

De novo, Pedro e o lobo



 Há uns tempos conversava com um amigo sobre a possibilidade de determinada personalidade política se candidatar numas eleições em que surgiria como candidato principal. Alguém opinou que essa possibilidade estaria arredada porque grande parte do eleitorado estaria sabedor de atitudes e práticas da tal personagem, ao longo de anos, que o levaria a ser punido eleitoralmente.
Mas será que aquele raciocínio é hoje adequado à nossa realidade? Não se pense que o autor destas linhas tem a mais leve veleidade de querer impor regras morais ou de se arvorar em pregador de ética. A intenção deste escrito é apenas a de abordar alguns aspectos da actualidade, tentando encontrar caminhos que nos possam evitar enganos e manipulações pela forma como a informação é hoje tantas vezes usada para criar sensações e ambientes que nada têm a ver com a realidade dos factos.
Os meios de comunicação social sofreram, nas últimas décadas e sofrem ainda, alterações profundas cujas consequências ainda estamos longe de perceber na sua totalidade. Na generalidade, os jornais começaram por misturar opinião com informação, abrindo caminho a uma confusão que leva a tudo menos uma informação isenta que permita aos leitores formar a sua própria opinião em face de dados fidedignos. Lamentavelmente muitos jornalistas, felizmente não todos, entraram no caminho fácil de misturar os seus sentimentos e opções políticas próprias com a informação que veiculam. Em consequência da falta de saúde financeira dos jornais, muitas redacções foram sendo preenchidas com estagiários ou jornalistas com contratos a prazo, cuja independência é muito frágil.
Os novos meios, baseados na internet, vieram complicar ainda mais a transmissão livre e rigorosa dos acontecimentos, exigindo dos receptores da mensagem uma capacidade de análise muito mais desenvolvida do que anteriormente. Em particular nas redes sociais, tornou-se necessário ir verificar da veracidade do que vai surgindo, mas também da data das notícias, sendo frequente que elas voltem à superfície meses ou anos depois de se terem verificado, o que altera por completo o seu significado. Depois, os algoritmos que estão por trás do facebook ou do instagram detectam automaticamente aquilo que cada um procura com mais frequência, passando a propor notícias e fontes afins, puxando artificialmente para um ou outro lado aquilo que é apresentado a cada utente e assim manipulando a própria realidade que cada um percepciona.
A rapidez dos novos meios leva a um atropelar contínuo das notícias, transformando em velho aquilo que no dia anterior fora uma grande novidade, substituindo-se uma indignação por outra e logo pela seguinte. Como as nossas mentes não estão habituadas a esta velocidade de substituição de recepção, tratamento e reacção, estes escândalos sucessivos deixam de ser genuínas manifestações de repúdio para se transformarem em puro entretenimento de massas.
Em Portugal, por uma razão ou por outra, actualmente não há quase um dia em que não surjam notícias sobre acções policiais em gabinetes ministeriais, autárquicos ou de empresas públicas e privadas. De muitas delas nunca mais se ouve falar, provavelmente porque se verificou que as queixas ou as suspeitas eram infundadas. Mas os casos que se desenvolvem até formulação de acusação são em número suficientemente grande para que todos os dias surjam novas ou requentadas notícias sobre os processos judiciais correspondentes. Será quase desnecessário recordar aqui os casos de justiça de banqueiros, de ministros e mesmo de um ex primeiro-ministro que não saem das notícias há cinco ou mais anos.
Este sucessivo e constante martelar sobre comportamento reprovável de representantes das elites sociais, políticas, económicas e financeiras não pode deixar de ter consequências sobre a forma como essas atitudes são olhadas pelo cidadão comum. O passo para considerar que “são todos iguais” é pequeno, tal como o é o de “normalizar” esses comportamentos, assim se respondendo à questão formulada no início desta crónica.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Novembro de 2019

Gladiator - Now We Are Free Super Theme Song

Borodin, In the Steppes of Central Asia, Polovtsian dances (Svetlanov)

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

ÀCERCA DE MUROS



Os muros que separam comunidades são um símbolo do pior de que a raça humana é capaz. E, infelizmente, há-os para todo os gostos. Desde a Grande Muralha da China com os seus 6.000 km de extensão e que é hoje apenas uma atracção turística, até aos muros com que os presidentes americanos Clinton, Obama e agora Trump têm vindo a tentar impedir a entrada clandestina de mexicanos nos EUA, passando pelo muro da Cisjordânia, há-os para todos os gostos.
Mas a História recente regista um que deveria fazer pensar duas vezes todos aqueles que sonham com a capacidade dos muros para reter a liberdade das pessoas. Ao contrário dos outros, cuja edificação encontra sempre como justificação proteger “os de dentro e o seu sistema de vida contra “os de fora” que os pretenderão invadir, o Muro de Berlim, dissessem os seus construtores o que dissessem, só teve um objectivo: impedir os berlinenses de sair, abandonar o regime que os oprimia.
Após o fim da hecatombe europeia da Segunda Guerra Mundial, Estaline aproveitou os avanços militares dos seus exércitos a caminho de Berlim e forçou, pela força e sem qualquer respeito pela vontade democrática dos respectivos povos, o estabelecimento de regimes comunistas por toda parte oriental da Europa. Apenas escapou a Grécia depois de uma guerra civil entre 1946 e 1949, porque as potências ocidentais apoiaram as forças democráticas contra os comunistas que, também na Grécia, tentavam tomar o poder pela força das armas. Sobre o Leste da Europa caiu o que Churchill chamou uma “cortina de ferro desde Stettin no Báltico até Trieste no Adriático”. Acerca do que se passou na Europa nesses tempos escuros da 2ª Grande Guerra e dos que se seguiram no leste europeu, não há como ler a história do camponês romeno Johann Moritz descrita no notável romance “A 25ª Hora” de Virgil Gheorghiu.
Na Conferência de Potsdam a Alemanha derrotada foi dividida entre as potências vencedoras. A partir de 1947 as zonas americana, britânica e francesa constituíram a República Federal da Alemanha, enquanto a parte de influência soviética se manteve à parte, dominada pelo partido comunista, na República Democrática Alemã. A capital, Berlim, ficou dentro da RDA, mas ficou também dividida em duas partes, à semelhança do resto do país. Com surpresa, os berlinenses acordaram no dia 13 de Agosto de 1961 para descobrirem que, desde a madrugada, a RDA estava a construir um muro dentro da cidade, assim separando milhares de famílias. O regime comunista conseguia assim, na prática, estancar a sangria de mais de 3 milhões de alemães de leste que tinham fugido para o ocidente, em boa parte através da parte ocidental de Berlim. O muro de Berlim ficou tristemente célebre pela sua agressividade ostensiva e pela ordem de atirar a matar sobre toda e qualquer pessoa que o tentasse ultrapassar, situação trágica que sucedeu muitas vezes, algumas das quais ficaram testemunhadas para sempre, através de registos fotográficos dramáticos.
Ficou célebre a frase do presidente americano John Kennedy ao visitar Berlim em Junho de 1963 para manifestar o apoio do mundo ocidental aos berlinenses sitiados: "Ich bin ein Berliner" ("Eu sou um berlinense", em alemão).
O “Muro de Berlim”, símbolo máximo da “Guerra Fria”, durou até 1989. Nesse ano, em que se comemoravam os 40 anos da RDA, o presidente soviético Gorbatchov visitou Berlim em Outubro, avisando o seu homólogo da RDA sobre a necessidade de acompanhar os tempos o que, poucos dias depois, levou à demissão de Honecker. No meio de imensa confusão em todo o bloco soviético, com países a decidirem ir para eleições, o seu sucessor, Egor Krenz viu-se envolvido num turbilhão de movimentos de rua e perdeu a mão da situação. A verdade é que nem a tristemente célebre polícia política comunista, a Stasi, que controlava a sociedade da RDA com mão de ferro através de mais de 90.000 colaboradores directos e de cerca de 180.000 informadores, isto num país com 16 milhões de habitantes, conseguiu garantir o controlo.
E, no dia 9 de Novembro de 1989, passam agora trinta anos, aconteceu o que, três meses antes, ninguém seria capaz de prever: a população berlinense literalmente saltou para cima do Muro e, de todas as formas, destruiu-o em pouco tempo, perante a passividade e espanto dos polícias, mudando o mundo já que, depois disso, nada mais foi como dantes em toda a Europa e mesmo no mundo, numa História ainda a fazer-se.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 11 de Novembro de 2019