Na noite de 4 de Dezembro de 1980 encontrava-me na Base
Naval do Alfeite, sendo Oficial de Dia no Comando da Flotilha de Patrulhas, por
cumprir nessa altura o Serviço Militar Obrigatório na Marinha Portuguesa como
Oficial da Reserva Naval. Depois do jantar encontravamo-nos três pessoas a ver
a televisão na sala, eu próprio, um 1º Tenente e um Sargento quando surgiu a
notícia de um acidente com um avião em Camarate, tendo morrido o
primeiro-Ministro Sá Carneiro. Instantaneamente os outros dois homens levantaram-se,
abraçaram-se de satisfação e literalmente saltaram pela sala fora a comemorar a
notícia. Quanto a mim, restou-me sair para o exterior, absorvendo o ar frio da
noite para tentar acalmar o espírito perante a trágica notícia e a cena inclassificável
a que acabara de assistir.
Faltavam três dias para as eleições presidenciais em que se
confrontavam os generais Ramalho Eanes que se candidatava à reeleição e Soares
Carneiro, apoiado pela AD liderada por Sá Carneiro que havia vencido as
eleições parlamentares pela 2ª vez com maioria absoluta dois meses antes, em 5
de Outubro. As sondagens indicavam uma muito provável vitória de Eanes, face
aos restantes candidatos de que apenas Otelo Saraiva de Carvalho poderia
sobressair, mas não aparecendo qualquer candidato directamente apoiado pelo PS
e pelo PCP que apostavam, assim, na reeleição de Ramalho Eanes. Isto, apesar da
relação tensa (para dizer o mínimo) entre Soares e Eanes e de em 1976, ainda na
sequência do 25 de Novembro, os comunistas terem sido os maiores opositores de
Eanes.
Com a queda do pequeno avião em Camarate, caíam também por
terra as últimas esperanças da AD em obter «um Presidente, uma Maioria, um
Governo» como era desejo expresso de Sá Carneiro, que corporizava aquele
projecto.
O desaparecimento de Sá Carneiro no acidente de Camarate
cortou uma carreira política que acabou por ser curta, mas de uma intensidade
rara, mostrando como a política pode ser exercida de uma forma assumidamente
disruptiva, tendo sempre em mente objectivos concretos e não aceitando situações
dúbias ou mesmo falsas que pudessem colocar em questão os valores fundamentais
subjacentes. Foi assim antes do 25 de Abril quando aceitou integrar as listas
do partido único de então para formar a chamada «ala liberal», com um programa
concreto de exigências prévias sobre liberdades individuais e de imprensa. Ao
ver a impossibilidade de obter o pretendido, demitiu-se com estrondo da então
Assembleia Nacional, cortando todos os laços com o regime.
Foi também assim depois do 25 de Abril, com a fundação do
PPD e lutas imediatas internas e externas. Externamente, rejeitou em absoluto a
hipótese de a Democracia poder ser tutelada pelos militares, bem como o domínio
«popular» das esquerdas revolucionárias sobre o voto livremente expresso pelo
povo em eleições livres, logo após as eleições para a Constituinte em 1975. Tal
como não admitiu que a Igreja, nomeadamente através do Cardeal Patriarca, se
imiscuísse na sua vida privada alinhando em campanhas sórdidas que misturavam
política e religião. Internamente, viu-se permanentemente atacado, praticamente
desde a fundação do partido, por vagas sucessivas de «verdadeiros
social-democratas» que o acusavam de desvios «liberalizantes» ou mesmo
direitistas. Desde Sá Borges, logo em 1975, até às «opções inadiáveis» em Junho
de 1978 que antecederam a formação da Aliança Democrática em que, pela primeira
vez, o PSD viria a aceder ao poder através da escolha democrática da maioria
dos portugueses.
Sá Carneiro não foi um homem santo, nem um político perfeito
e, como todos nós, muitos erros terá cometido na vida. Mas algo fez muitíssimo
bem. Corporizou como poucos políticos os anseios dos portugueses, lutou com
denodo pelo que acreditava, quer em oposição, quer ao exercer o poder. E viveu
a vida em grande velocidade e com intensidade máxima. Só por isso merece aqui
ser recordado, na passagem de 39 anos sobre o seu desaparecimento.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra, em 2 de Dezembro de 2019
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