Quando se aproxima o fim de
períodos de tempo como sejam anos, décadas ou séculos, é quase obrigatório
fazer-se uma avaliação do que sucedeu ou do que foi conseguido. Mas há
avaliações, particularmente de governantes, que só se tornam possíveis de fazer
algum tempo depois da sua saída definitiva do poder. Os critérios para fazer
essa avaliação variam também muito sendo quase sempre impossível encontrar
unanimidades de opinião.
Apesar das diferenças de critérios,
uma pergunta será fácil de responder para avaliar uma governação: o seu país ou
o mundo, ficaram melhores ou piores à saída do poder, relativamente ao seu
início de funções? Ou dito de outra forma, qual foi a herança que deixaram?
Félix Houphouët-Boigny foi o
primeiro presidente da Costa do Marfim, tendo governado o país entre 1960 e 1993.
Foi um presidente moderado, que conseguiu notáveis sucessos económicos para o
seu país. A sua acção internacional, em particular em África, foi reconhecida,
levando a que, em 1989, a UNESCO tivesse criado o Prémio pela Paz Félix
Houphouët-Boigny.
Contudo, a governação de Houphouët-Boigny teve igualmente
aspectos que, no mínimo, se poderão considerar controversos. Transferiu a
capital do país de Abidjan para a sua terra natal, Yamoussoukro, onde construiu
um aeroporto capaz de receber o Concorde e erigiu a maior catedral do mundo,
que custou 300 milhões de dólares. Construiu ainda um grande palácio
presidencial rodeado por um lago artificial onde mandou colocar crocodilos.
Como é natural, depois da sua morte em 1993, a capital voltou a ser Abidjan,
tendo a anterior sido praticamente abandonada. O país regrediu económica e
socialmente de forma acentuada e é, de novo, um dos países mais pobres de
África. Mas houve algo de que toda a gente se esqueceu, os crocodilos do lago
do antigo palácio presidencial, cujo número aumentou de uma forma assustadora,
tendo invadido os cursos de água naturais da região. E é assim que, hoje, as
pessoas não se podem aproximar de rios e ribeiras sob pena de serem atacadas pelos
animais. A herança da governação de Félix Houphouët-Boigny, na terra em que
nasceu, acaba por ser a praga de crocodilos perigosos.
Este pequeno exemplo serve para
mostrar como a governação de alguém que foi no seu tempo tido como um exemplo
foi atravessada por incongruências que, anos depois, acabaram numa herança negativa.
Neste caso, para além de despesas sumptuárias dispensáveis, houve algo que
falhou gravemente na governação: a falta de sustentabilidade do desenvolvimento
económico. A única herança que é sentida actualmente é mesmo o perigo que os
crocodilos representam para a população.
E entre nós? Qual a herança
deixada por cada um dos responsáveis políticos que temos escolhido em eleições?
Desde os diferentes presidentes de Câmara até aos primeiros-ministros e presidentes
da República, quais foram os legados que nos deixaram com as suas governações?
No caso dos presidentes da República as suas eleições são pessoais, pelo que as
responsabilidades das suas actuações também o são, sendo fácil apreciar os
legados políticos de Eanes, Soares, Sampaio, Cavaco e, daqui a uns anos,
Marcelo. Já quanto aos outros governantes, locais e nacionais, foram escolhidos
através dos resultados eleitorais dos partidos que os indicaram para tal.
Por
mais personificadas que sejam as suas actuações, não é possível separá-las dos
respectivos partidos, em função do estabelecido constitucionalmente. Sendo
assim, quais as heranças que Mendes Abreu, Moreira, Mendes Silva, Machado,
Encarnação, Barbosa de Melo deixam para Coimbra e seus munícipes? Tal como
Soares, Sá Carneiro, Balsemão, Cavaco, Guterres, Barroso, Santana, Sócrates,
Passos, Costa nos governos PS e PSD. Será que algum nos deixou crocodilos,
ainda que de forma simbólica? Depois de amanhã entramos num novo ano. Não nos
fará mal, fora de campanhas eleitorais, fazer um pequeno esforço de memória e
tentarmos proceder a uma avaliação do que a acção de todos estes governantes
nos legou, deixando de lado o dia-a-dia e, se possível, as palas partidárias ou
ideológicas que tantas vezes nos enviesam as perspectivas da realidade.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Dezembro de 2019