segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

AMIZADE


Um dos fenómenos do nosso tempo é o surgimento de uma nova solidão que vem disfarçada de companhia permanente. As redes sociais, com as suas propostas de novas «amizades» com convites sempre em número crescente conseguem dar a impressão de imensa companhia mas, na realidade, não passam de um écran que, ao desligar, nos devolvem à realidade, tantas vezes vazia de contacto humano. As redes sociais, seguindo a senda do «facebook» criaram a figura dos «amigos» para designar as ligações pessoais através da Internet que passou a ter um significado completamente diferente daquele que tradicionalmente lhe é atribuído. Como o seu nome indica, o funcionamento destas estruturas é em rede, pelo que os «amigos» chamam outros, muitas vezes sugeridos pelos próprios algoritmos que lhes alimentam os motores. Depois, uma espécie de protocolo não escrito leva a uma série de procedimentos a seguir, no que respeita a «gosto», ou comentários e respectivas respostas, que sugere o estabelecimento de relações com aspecto de serem especiais. Quem viveu antes da existência e difusão destas redes à escala planetária, sabe muito bem o que são amigos e, eventualmente, manterá alguns das suas listas da internet, outros serão mantidos fora dessas redes. Contudo, quem tomou consciência de si já depois do surgimento das redes sociais, isto é, os mais jovens, terá alguma dificuldade em estabelecer claramente essa diferença, até porque grande parte da sua vida passa-se na net tendo, por exemplo, abandonado a televisão clássica e passado a estabelecer contactos pessoais através na internet, com prejuízo dos contactos directos.
Quando se avança na idade, percebe-se bem o valor das amizades estabelecidas ao longo da vida, sentindo-se com maior peso a perda daquelas que se vão indo, mas aprendendo também a apreciar melhor os momentos que se passam na sua companhia. Percebe-se quão preciosos foram aqueles tempos aparentemente perdidos em conversas tantas vezes leves, mas em que mutuamente se abriam as almas em momentos de cumplicidade e de partilha de sentimentos. Aí nos demos uns aos outros, sem pedir nada em troca, mas olhando-nos olhos nos olhos e, sem o saber então, construindo em nós todos os alicerces da participação futura na sociedade.
Tenho, hoje em dia, a noção clara de que as tentativas históricas de justificar o comportamento humano através de teorias absolutas estão erradas e passam ao lado da complexidade dos seres que todos nós somos. As teorias do homem naturalmente bom introduzidas por Rousseau e que levaram ao iluminismo vieram a desembocar na construção do «homem novo» do socialismo científico e nas teorias biológicas degeneradas de Lysenko. Pelo contrário, os defensores da raça pura e da perfeição humana obtida pela luta das espécies acelerada e artificial forneceram aos teóricos nazis a justificação para a barbaridade do genocídio do holocausto.
É através de uma perfeita integração nas diferentes sociedades, em respeito pelos direitos do outro que homens e mulheres se podem afirmar na sua individualidade e personalidade próprias. Para isso têm que se conhecer a si mesmos, o que só acontece com um desenvolvimento de conhecimentos e bases culturais sólidas, mas também com um contacto directo com outros, necessariamente diferentes. O papel da amizade, mesmo para além da família, surge naturalmente como tendo uma importância crucial para a obtenção de uma saudável integração social. Os amigos, não aqueles de construção rápida que surgem e vão mas aqueles com quem construímos amizade em tempos despreocupados, são muitas vezes, em determinados momentos da vida, aquele apoio sem o qual nos seria muito mais difícil sair de situações pessoais de dor e sofrimento. Tenho para mim que a actual inundação de ansiolíticos e anti-depressivos na nossa sociedade se deverá, em boa parte, a uma degradação claramente visível das redes sociais tradicionais que nos serviam de amparo nas dificuldades. A nossa organização social actual está a desumanizar a sociedade. Muitas pessoas trabalham a distâncias grandes de casa, correm durante todo o dia para obterem ordenados medíocres que não lhes trazem satisfação nem segurança económica e pessoal. A primeira vítima é o relacionamento familiar, logo depois a possibilidade da satisfação da conversa calma e despreocupada com amigos. Os raros momentos de relaxe são passados em frente do computador, promovendo assim o crescimento do isolamento pessoal, enganado agora pelas redes da Internet que se tornam numa prisão física e intelectual.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Dezembro de 2019

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