segunda-feira, 13 de abril de 2020

O TEMPO DA CIÊNCIA


Uma pandemia trazida subitamente por um agente ainda desconhecido provoca, como temos visto, uma fuga ao contágio para evitar uma utilização dos sistemas de saúde para além do suportável o que arrasta consigo consequências sociais e económicas desastrosas que demorarão tempo a ultrapassar e recuperar.
O peso desta envolvente sanitária, social e económica é de tal ordem que, por vezes, nos faz esquecer o mais importante de tudo: encontrar soluções médicas para conseguir parar a pandemia e, fundamentalmente, para evitar que volte em vagas sucessivas. E o esforço que se está a levar a cabo em todo o mundo para conseguir esses objectivos é notável e, provavelmente, nunca antes foi visto a esta escala.
Para além das discussões científicas sobre o grau de imunidade que a actual pandemia, só por si, poderá introduzir na população mundial, há que produzir uma vacina que seja eficaz e se possa distribuir rapidamente pelo mundo inteiro. Já todos percebemos que o vírus vai sofrendo mutações e que, por isso, o ideal será que a vacina preveja essa situação e seja eficaz em futuras e previsíveis epidemias.
O esforço de investigação científica, a contra relógio, é absolutamente notável e mostra que, apesar de todos os seus problemas, a Humanidade é ainda e sempre, capaz do melhor.
De acordo com a revista científica Nature em todo o mundo haverá 115 vacinas candidatas para a doença COVID-19, em fases diferentes de desenvolvimento, estando 5 já em fase de ensaios clínicos. É sabido que as vacinas demoram normalmente anos a desenvolver desde as fases iniciais até estarem prontas para utilização segura e eficaz. A vacina contra o Ébola, por exemplo, demorou 5 anos a ser desenvolvida e ainda não há vacina contra o AIDS ao fim destes anos todos de investigação e enormes somas de dinheiro gastas. Recorde-se que o novo coronavírus foi detectado em Dezembro, na China, onde começou a pandemia, há escassos 4 meses. A actual tecnologia permitiu que, logo nos primeiros dias de Janeiro fosse publicada nos Estados Unidos a sequência genética do coronavírus SARS-CoV-2, passo essencial para o desenvolvimento da vacina. De acordo com a revista Nature, numerosos laboratórios por todo o mundo estão a utilizar diversos métodos já licenciados para produzir vacinas que pretendem, fundamentalmente, levar os organismos humanos a desenvolver anticorpos que neutralizem a capacidade do vírus de entrar nas células humanas.
Mas há também quem esteja a tentar obter a vacina por métodos completamente inovadores, utilizando técnicas de vanguarda inacessíveis até há pouco tempo. Na última edição do jornal Expresso explicava-se o que se está a fazer num laboratório da Universidade de Washington, desenvolvendo uma vacina diferente das habituais, através do uso de ADN e ARN que leve o organismo a «produzir uma proteína viral capaz de resposta imunitária» exigindo uma única injecção, ministrada também por um método inovador.
Todo este esforço pelo mundo inteiro significa investimentos extremamente avultados, quer por parte de Estados, quer por empresas privadas, prevendo-se que a primeira vacina possa estar pronta a ser utilizada nos primeiros meses de 2021.
Enquanto tantos tentam passar mensagens negativas sobre a pandemia difundindo teses catastrofistas de vingança da Terra sobre o Homem, de o vírus ser uma arma de guerra biológica, ou uma espécie de castigo divino, etc. que não trazem nada de construtivo, governantes e cientistas de todo o mundo dedicam grande parte do seu esforço a encontrar soluções para o problema. Ao longo da História houve muitas pandemias em que desapareceram milhões de mortos. Para falar das mais recentes, há cem anos mais de 500 milhões de pessoas adoeceram com a «gripe espanhola», tendo morrido cerca de 100 milhões, a gripe asiática de 1957/58 provocou mais de um milhão de mortes e a SIDA desde que surgiu nos anos 80 já levou mais de três dezenas de milhões de pessoas.
Talvez com estas memórias presentes, o esforço a que diariamente assistimos é enorme e é isso que verdadeiramente importa: perante uma ameaça global, a Humanidade, embora certamente com erros, arregaça as mangas e luta com todas as forças para lhe fazer frente e salvar o maior número de pessoas.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Abril de 2020

segunda-feira, 6 de abril de 2020

PEDIMOS DESCULPA POR ESTA INTERRUPÇÃO, A ECONOMIA SEGUE DENTRO DE MOMENTOS


A prorrogação do «estado de emergência» por mais 15 dias (por ora) mostrou-se uma necessidade evidente, dado que a evolução da pandemia COVID 19 aconselha à manutenção do distanciamento social com as necessárias consequências a nível de famílias e de empresas.
Para além dos aspectos sanitários, os primeiros a ter em conta nesta luta contra uma epidemia generalizada, e que exigem uma capacidade humana, material e de organização excepcionais, o confinamento das pessoas às suas residências tem consequências tremendas a nível da economia. Tem e vai ter durante muito tempo.
Na realidade, o tele-trabalho consegue diminuir um pouco as consequências para muitas empresas, mas há muitos sectores onde tal não é possível. Os transportes de pessoas estão praticamente parados e o turismo e restauração também, tal como grande parte da indústria e do comércio.
As medidas governamentais são importantes, mas consistem essencialmente em dilatar prazos de pagamento e em definir as condições de lay-off, em que as empresas deverão assegurar 30% dos ordenados reduzidos até um máximo de €1.905 e a seg. social 70%. Contudo, o Estado continua a exigir o pagamento de IRS às famílias. Neste momento, cerca de meio milhão de trabalhadores estão já em lay-off e dezenas de milhares perderam mesmo os seus empregos. Tudo isto torna muito difícil compreender, e mesmo aceitar, que o Governo tenha publicado no passado dia 20 de Março o Dec.-Lei n.º 10-B/2020 que aumenta os salários dos funcionários públicos. Esta publicação aprofunda a diferença patente entre a situação dos funcionários públicos que neste momento de crise nacional têm assegurada a manutenção de emprego e ainda por cima têm aumentos de vencimentos.

A queda do produto decorrente da paragem económica dependerá naturalmente do tempo que durar a luta contra a pandemia e de quanto tempo demorará o regresso das pessoas aos seus postos de trabalho. A análise das curvas epidemológicas da COVID 19 permite prever, numa visão muito optimista, que lá para meados de Maio a situação poderá reverter e começar a regressar-se a uma normalidade possível. As últimas previsões do Banco de Portugal relativas à queda do PIB em 2020 variam entre os 3,7% e os 5,7% com o desemprego a atingir os 10%. Há, no entanto, muitos analistas que contrariam estas previsões apontando para uma queda do produto próxima dos 20%.
Estamos, portanto, a caminhar para uma situação alarmante que exigirá muito dinheiro para, em primeiro lugar diminuir a sua extensão, e em seguida para conseguir uma recuperação. Não nos podemos esquecer da dívida portuguesa de 250.000 milhões de euros, ao fim de 5 anos de crescimento, que condiciona a capacidade de resposta do país. Se a União Europeia flexibilizou as exigências em termos de défice que, devido ao combate à epidemia e suas consequências, poderá agora ultrapassar os 3%, ainda assim Portugal não tem condições financeiras para sozinho, responder à crise que enfrentamos.
Assim se compreende melhor a resposta inabitual de António Costa às declarações insultuosas do ministro das Finanças holandês. A exigência, por parte dos países do Sul da Europa dos chamados eurobonds ou mesmo dos coronabonds específicos para a actual situação, choca de frente com as posições dos países do Norte da Europa que os recusam liminarmente, até porque os seus governantes estão limitados pelas vontades dos seus eleitorados. Por outro lado, o Sr. Klaus Regling, presidente do Mecanismo Europeu de Estabilidade veio esclarecer que, mesmo que os eurobonds fossem aprovados politicamente, o que nem é o caso, nunca seria possível montá-los em menos de três anos. Resta, portanto, a utilização do Mecanismo Europeu de Estabilidade, retirando-lhe parte do carácter de austeridade, de que ninguém quer ouvir falar.
A recuperação económica vai ter que se verificar, mas não vai ter a chuva de dinheiro europeu que seria proporcionada pelos eurobonds em que as condições dos empréstimos seriam ditadas pelas condições financeiras dos países do norte cujas economias representam 70% do produto europeu e não pelas nossas próprias condições. Nesta situação, o Norte não é de facto solidário para com o Sul, mas não podemos esquecer que, pelo seu lado, os países mediterrânicos representam mais de 70% da dívida europeia. Estamos perante um cenário difícil mas, ao contrário de muitos, estou convencido que a União Europeia vai sair mais forte desta crise, assim os seus líderes se mostrem capazes. Porque, como alguém disse antes, «só a crise traz verdadeiramente mudança».
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Abril de 2020

Análise dos apoios governamentais para defrontar o COVID-19

Do Observador, artigo de Abel Mateus.

A ignorância de Miguel Sousa Tavares sobre a Holanda

Já todos percebemos que o ministro das Finanças holandês disse umas barbaridades sobre  a Espanha, o que levou António Costa a tomar as dores de Espanha como suas e dizer também umas barbaridades (cá fora, porque na reunião ficou caladinho).
Do blogue Impertinências, retirei este comentário sobre o artigo que esta semana Miguel Sousa Tavares escreveu no Expresso sobre o assunto, demonstrando uma falta de cultura que impressiona:

«Eis o que escreveu na sua coluna habitual no semanário de reverência um MST ressabiado porque «os holandeses, os novos-ricos da Europa, actuando como gauleiters da Alemanha» não parecerem disposto a subsidiar a prodigalidade greco-latina através dos coronabonds:
«E, já agora, tirando o “Século de Oiro” da pintura holandesa, abrangendo o último quartel do século XVI e a primeira metade do século XVII, o que deu a Holanda à Europa? Van Gogh, na pintura, e Johan Cruyff, no futebol, são as únicas excepções. De resto, e sobretudo comparando com a Espanha e a Itália, nos últimos quase 400 anos, eles não deram à Europa um escritor, um músico, um compositor, um arquitecto, um estadista, um economista, um cientista, um automóvel, um desenho de sapatos, um filme inesquecível, uma marca de vinho, uma receita de cozinha, uma nova borboleta..
Começo por «novos-ricos» que me parece pouco ajustado a um povo que, desde pelo menos o século XVII, quando aqui abundava a pobreza mais absoluta fora da corte, tem um nível de riqueza muito acima dos habitantes da jangada de pedra.

O "Século de Oiro" foram vários séculos, em que encontramos Bosch, Brueghel o Velho, Hals, Rembrandt, Vermeer e muitos outros. Depois disso, para além de van Gogh (e não Van Gogh), com projecção internacional, lembro assim de repente Escher, Mondrian e de Kooning.

No futebol, além de Cruyff, lembro assim de repente Marco van Basten, Dennis Bergkamp, Ruud Gullit e Ronald Koeman.

É certo que a literatura holandesa não produziu grandes escritores. Em contrapartida produziu Erasmo e Espinoza. Ah, e produziu vinte Prémios Nobel, a maioria em Física e Química, mas também dois em Economia (Jan Tinbergen e Tjalling Koopmans).

É certo que, para além do contemporâneo Gustav Leonhardt, a Holanda também não produziu grandes nomes na música. Em contrapartida, é sede para dez das 500 maiores empresas globais, como Royal Dutch Shell, EXOR, Airbus, ING, Randstad, Heineken, Rabobank. Por acaso, também por lá têm sede fiscal várias empresas portuguesas do PSI-20 (que por acaso só tem 18 empresas cotadas).

Em matéria de arquitectos de topo também só me estou a lembrar de Rem Koolhaas. E quanto a estadistas não recordei nenhum além de Johan De Witt,

É certo que além dos seus 17 Nobel em Física, Química e Medicina, não se encontram grandes cientistas. Em contrapartida é o 9.º país com mais patentes, Portugal é o 39.º (World Intellectual Property Indicators 2019).

Concedo que não me ocorre automóvel, desenho de sapatos, filme inesquecível, marca de vinho, receita de cozinha e borboleta que possa ser atribuída a holandeses e nestas matérias encontramos do lado português o vinho do Porto (que até pode ter sido inventado pelos ingleses...), o bacalhau à Gomes de Sá e as ameijoas à Bolhão Pato.»

Doc Rossi - Java d'amour on Corsican Cetera

segunda-feira, 30 de março de 2020

IMPLOSÃO VIRAL


É muito fácil identificar a actual situação provocada pela pandemia COVID-19 devida ao vírus SARS-CoV-2 como um estado de guerra e essa tem sido a base de análise para a compreensão e tentativa de antevisão das possíveis consequências dos dias que estamos a viver para as famílias, empresas e trabalhadores.
Esta é porém uma guerra muito diferente. Enquanto nas guerras clássicas dois ou mais contendores combatem entre si, normalmente com utilização de explosivos nesta, por enquanto, não se combate o inimigo, apenas nos escondemos e fugimos dele enquanto aguardamos por armas que possam abater a pandemia, isto é, vacinas. E, em consequência, assistimos às mais variadas implosões.
Desde logo, a implosão sanitária. A actual epidemia mundial veio adicionar-se às doenças que existem normalmente. Quem atender à comunicação social, parece que, de repente, deixou de haver doenças cardio-vasculares, cancros, diabetes, etc.etc. Nada de mais errado. O que acontece é que o sistema de saúde tem que dar resposta às doenças agora “normais” e a esta nova COVID-19. Se, como sabemos, já anteriormente havia problemas para o SNS responder em tempo às diversas solicitações, neste momento assistimos a uma verdadeira aflição de que a falta de vacinação corrente é apenas um exemplo. E quem está na frente de ataque, o pessoal da saúde desde os médicos aos condutores de ambulância, todos se encontram a trabalhar muito para lá das condições normalmente exigíveis e todos devemos ter consciência desse facto. Acresce que o número de profissionais de saúde infectados é já grande, sendo fácil admitir que cresça imenso, o que trará dificuldades de resposta crescentes.
Depois, a implosão social. Como ainda não temos como combater o SARS-CoV-2, a solução imediata é confinar as pessoas ao máximo, minimizando os contactos pessoais. Desde as quarentenas em casa, à limitação de circular nas ruas, ao tele-trabalho quando possível, tudo se tenta para dificultar a propagação inter-pessoal do vírus. Nos contactos sociais assiste-se mesmo ao surgimento de novas maneiras de cumprimento, já que os beijos e simples cumprimentos de mão estão completamente arredados do comportamento aceitável. O receio de que já sejamos portadores do vírus sem o saber e a possibilidade de sermos infectados em qualquer lugar e a qualquer momento apesar das precauções instala um medo colectivo que, se durar o que se prevê, poderá trazer implicações sociais muito graves. Já se ouvem por aí teorias cabalísticas de a Terra a vingar-se do Homem e outras semelhantes, só faltando mesmo a tese do «castigo divino». Devemos consciencializar-nos de que ao longo da história da Humanidade já houve várias pandemias e que nunca como hoje houve capacidade de resposta científica, sanitária e mesmo humanitária como estamos a assistir neste momento, rejeitando milenaristas e profetas do apocalipse, em geral.
A implosão económica é já um facto e ninguém pode prever as consequências. A paragem começou pela educação, seguida pelas viagens e rapidamente alastrou a restaurantes, desportos e inúmeras indústrias. Não há modelos económicos para a situação de estancar de repente o consumo e a produção económica, sem que se conheça a duração dessa situação. Quer o Governo, quer a União Europeia estão a preparar apoios às empresas que se vêem na situação de pagar os vencimentos dos seus empregados, prestações sociais e impostos, sem haver produção nem vendas, esperando-se que as soluções se venham a mostrar eficazes. Sob pena de se entrar numa recessão profunda generalizada.
Como se sabe, nas guerras a verdade é a primeira vítima. Ao contrário do que se vê na China onde teve início esta pandemia, os regimes democráticos têm a vantagem de, mesmo em situações de emergência, garantirem a liberdade de expressão. Além, claro, da existência de partidos de governo e de oposição, com as obrigações que se esperam inerentes a cada uma das posições, agora ainda com mais exigência.
O que se dispensa é políticos a tentar disfarçar a realidade com optimismos desajustados ou críticas injustas e inoportunas tentando aproveitar a situação para fazer passar as suas opções ideológicas. Antes pelo contrário, é preciso evitar uma implosão da verdade que induziria inevitavelmente a implosão democrática, e garantir a confiança dos cidadãos para o que se está a fazer os quais, a seu tempo, tirarão as suas conclusões sobre o que se passou. Numa realidade muito diferente da que conhecemos até há poucas semanas.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Março de 2020

segunda-feira, 23 de março de 2020

COIMBRA, CIDADE RÉGIA


Texto completo:

Tudo começou pelo princípio, que é por onde as boas histórias devem começar. Quem lhe deu início foi, precisamente, D. Afonso Henriques. O nosso rei primeiro terá nascido em Coimbra ou em Viseu, havendo bons defensores das duas teses. De acordo com o seu biógrafo José Mattoso, os últimos elementos históricos disponíveis levam a que se incline para Viseu, porém sem grandes certezas, pelo que a hipótese coimbrã não se deve descartar. Mas de algo podemos estar certos. Por esta ou aquela razão, a que não será alheia a antiga história das rivalidades entre a velha nobreza de entre Douro e Minho e a galega personificada pelos Trava ao lado de sua Mãe D. Teresa, o que é certo é que D. Afonso Henriques, após S. Mamede, se virou para Sul. Coimbra, na fronteira do Condado Portucalense com o território islâmico, era concelho reconhecido desde 1111 pelo seu Pai o Conde D. Henrique o qual aliás, ali passou boa parte da sua vida, juntamente com D. Teresa. D. Afonso I para lá levou os seus companheiros em 1131, constituindo uma Corte e transformando essa cidade na primeira capital do novo reino, que seria o seu. Assim, Coimbra passou a ser a primeira capital portuguesa e ficou umbilicalmente ligada à fundação do país e, em particular, a toda a dinastia que historicamente ficou conhecida como sendo a primeira, ou de Borgonha, denunciando a íntima ligação à Europa do reino nascente. As pedras da Cidade são, ainda hoje, o testemunho palpável desses tempos e memória das pessoas que estiveram directamente ligadas ao seu início. Diz-se que a Roma de hoje é o resultado de pelo menos sete camadas de épocas históricas, ou Romas diferentes, cada uma delas permitindo uma viagem própria no tempo, no mesmo espaço geográfico. Coimbra abriga também várias eras de grande interesse histórico que correspondem a diferentes povos, culturas e vivências, mesmo muito antes de os Fenícios com muita probabilidade aqui terem chegado nos seus barcos subindo o rio até aos dias de hoje, passando pelos Romanos, Visigodos, Muçulmanos e sabe-se lá quem mais. O Rio Mondego ditou a sua localização; permitindo a navegação desde a sua foz para montante até surgir o primeiro sério obstáculo natural, precisamente o morro onde seria construída a Aeminium romana, ou Ermínio visigoda, ou Conimbria do século X, a Coimbra dos nossos dias. Para trás de Coimbra começavam as montanhas difíceis de ultrapassar para todos, até para o Rio que a partir daí adquiria um temperamento diferente, mais selvagem e difícil de ser navegado. Este ensaio propõe-se proporcionar aos seus leitores um roteiro leve que estabeleça a ligação entre as pedras que até nós chegaram e as pessoas concretas com elas relacionadas, entre os séculos XII e XIV, isto é, desde D. Afonso Henriques até à realização das Cortes de Coimbra em 1385. Foi a época da COIMBRA, CIDADE RÉGIA.
A primeira pedra de Santa Cruz foi lançada em 28 de Junho de 1131 por Telo e João Peculiar com o apoio expresso e grande protecção de D. Afonso I, tendo o seu primeiro prior sido Teotónio. Conta-se que o primeiro rei deu os “banhos régios” às portas de Coimbra àqueles monges viajados e de excepcional cultura em troca de uma célebre e magnífica sela de montar que Telo havia comprado anos antes em Montpellier. A importância religiosa e cultural de Santa Cruz ficou desde o início marcada pela amizade entre o seu prior S. Teotónio e S. Bernardo de Claraval. Como prova dessa amizade e consideração, S. Bernardo enviou mesmo o seu báculo a S. Teotónio, o qual está guardado no Museu Machado de Castro. O Mosteiro de Santa Cruz seria, durante séculos, escola de uma importância extraordinária, não só para os frades, mas também para a sociedade civil e os nobres que lá estudavam. Numa feliz e rara continuidade histórica, Santa Cruz é repositório dos restos mortais de D. Afonso Henriques. Na mesma capela, em Santa Cruz, descansam os restos mortais de D. Sancho I nascido em Coimbra em Novembro de 1154.
O nosso segundo rei, filho de D. Afonso Henriques e de D. Mafalda de Sabóia foi, como escreveu António de Vasconcelos, “sagrado, coroado e entronizado” a 6 de Dezembro de 1186, três dias após a morte do Rei Conquistador, na Catedral de Santa Maria de Coimbra, que hoje conhecemos como Sé Velha. Templo antiquíssimo, construído de novo no século XII aliando os estilos românico e gótico, guarda o túmulo do moçárabe Sesnando Davides a quem o rei de Leão Fernando Magno, que conquistou Coimbra aos mouros, entregou o governo de Coimbra.
Em Coimbra nasceu e veio a morrer o terceiro rei de Portugal, D. Afonso II, que teve reinado breve e se dedicou essencialmente à administração do Reino, tendo realizado nesta Cidade em 1211 as primeiras Cortes de que se tem memória. A sua irmã D. Sancha, que viria a ser beatificada em 1705 fundou, no burgo de Celas então situado nos arredores de Coimbra, um mosteiro cisterciense que ainda hoje é uma jóia preciosa da cidade. Para além das alterações que foram sendo introduzidas ao longo dos séculos, em particular no século XVI, o Mosteiro de Celas apresenta ainda hoje alguns dos elementos arquitectónicos que remeterão para o edifício original medieval.
Por seu turno D. Urraca, mulher de D. Afonso II deu origem, por volta de 1217, ao início da que é hoje a Igreja de Santo António dos Olivais, ao ceder a capela de Santo Antão aos franciscanos Frei Zacarias e Frei Gualter, companheiros de S. Francisco de Assis que fundara a sua Ordem em 1209. Fernando Martins de Bulhões, monge de Santa Cruz, haveria de transitar para a Ordem Franciscana mudando o nome para António e indo para o eremitério dos Olivais que viria, após a sua canonização em 1232, a adoptar a designação de Santo António dos Olivais.
O quarto rei de Portugal D. Sancho II também nasceu em Coimbra, em 1202, tendo ido morrer a Toledo, por ter sido destituído a mando do Papa Inocêncio IV, sucedendo-lhe o irmão D. Afonso III, igualmente nascido em Coimbra, em 1210. Recorda-se a lenda da figura de Martim de Freitas, Alcaide-Mor do Castelo de Coimbra que, devendo fidelidade a D. Sancho II, se recusou a entregar o castelo a D. Afonso III, suportando a cidade um cerco que, tendo começado em 1246, só terminou em 1248, após a morte de D. Sancho II e de Martim de Freitas se deslocar pessoalmente a Toledo para verificar a morte do antigo Rei. Só após isso entregou as chaves da cidade de Coimbra ao novo Rei.
D. Dinis, filho de D. Afonso III e de D. Beatriz de Castela foi o sexto rei de Portugal e também ele nasceu em Coimbra, em 1261. Subiu ao trono bem jovem, em 1279, tendo sido um Rei culto, trovador e poeta. D. Dinis abraçou Coimbra com carinho e muita intensidade. Com um dos braços criou a Universidade em 1 de Março de 1290, logo transferida para Coimbra em 1308, assim definindo o carácter de Coimbra que dura até aos dias de hoje. Ao rei-poeta se deve a “Magna Charta Priveligiorum”, primeiro estatuto da universidade. Ao longo dos séculos seguintes, a Universidade “viajou” entre Coimbra e Lisboa, vindo a estabelecer-se definitivamente em Coimbra em 1537. Com o outro braço trouxe a sua mulher Isabel de Aragão, amada pela sua bondade e carinho para com os necessitados, simbolizado no “milagre das rosas”, vivendo ainda hoje no coração dos conimbricenses, que dedicam uma especial devoção à Rainha Santa Isabel, padroeira da Cidade de Coimbra. Após enviuvar em 1325, a Rainha Santa foi morar para um paço junto do mosteiro das Clarissas, hoje conhecido como Mosteiro de Sta. Clara-a-Velha e onde viria a ser sepultada em 1336. Com a subida do nível das águas do Rio Mondego, aquele mosteiro começou a sofrer inundações, tendo as relíquias da Rainha Santa sido colocadas num túmulo-relicário de cristal e prata em 1677 no Mosteiro de Sta. Clara-a-Nova. A Rainha Isabel viria a ser beatificada em 1516, e canonizada, em 1625. A data do seu falecimento, 4 de Julho é o dia da cidade de Coimbra.
A D. Dinis sucedeu o filho Afonso nascido em Coimbra em 1291. D. Afonso IV ficou conhecido como “O Bravo”, tendo dado uma ajuda importante na derrota histórica dos mouros na Batalha do Salado travada no Sul de Espanha, conjuntamente com Afonso XI de Castela, seu genro. Os acontecimentos da história dos amores de Pedro e Inês, passaram-se durante o seu reinado. O seu filho Pedro, príncipe herdeiro, nascido em Coimbra em 1320, casado com D. Constança, tomou-se de amores com uma aia galega de sua mulher, D. Inês de Castro. Após a morte de D. Constança ao dar à luz o filho e futuro rei Fernando em Outubro de 1345, D. Pedro veio a estabelecer-se em Coimbra com Inês, com quem veio a ter três filhos. Mas as intrigas da corte, tendo em conta a situação da ligação do Príncipe e o poder da família de Inês, levaram o Rei D. Afonso IV a decidir a sua morte, o que veio a suceder em Janeiro de 1355 no Paço de Sta. Clara, onde hoje se situa a Quinta das Lágrimas. Depois de se tornar rei, por morte de seu pai ocorrida em 1357, D. Pedro legitimou os filhos através da Declaração de Cantanhede em que afirmou ter casado secretamente com D. Inês em 1354 que, assim, foi rainha depois de morta.
D. Fernando I nasceu igualmente em Coimbra, mandou reforçar a muralha da cidade e construir novas torres, acreditando-se que entre elas estará a de Almedina junto da porta principal da Cidade com o mesmo nome. A linha dinástica de Borgonha terminou com a morte de D. Fernando em 1383 com apenas 37 anos, uma vez que a sua única filha legítima D. Beatriz de Portugal, também nascida em Coimbra, casou com D. João I, Rei de Castela. Seguiu-se a crise de 1383/1385 durante a qual os revoltosos portugueses contra a integração de Portugal no reino de Castela apoiaram D. João Mestre de Avis, filho ilegítimo de D. Pedro I e, portanto, irmão de D. Fernando, escolhido e aclamado como Rei nas Cortes de Coimbra de Abril de 1385.
Por fim, toda a Primeira Dinastia está ligada ao Paço Real que, a partir de 1131, foi residência quase permanente dos reis de Portugal desde D. Afonso Henriques, que aqui casou em 1146 com D. Mafalda de Sabóia, até D. Afonso III. Antes da monarquia portuguesa já os Paços da Alcáçova haviam sido morada dos primitivos condes e governadores de Coimbra.
A origem da Alcáçova remonta ao domínio muçulmano, tendo sido mandada edificar nos finais do séc. X por Almançor que, pela segunda e última vez, conquistou a cidade para os muçulmanos em 987. Com a possível ou mesmo provável excepção de D. Afonso Henriques, quase todos os monarcas da casa de Borgonha nasceram no Paço Real da Alcáçova, aí alguns morreram e muitos reis e príncipes lá celebraram os seus casamentos. Apenas D. Pedro, como à data do seu nascimento ainda governava seu Avô D. Dinis que ocupava o Paço Real, terá nascido na morada conimbricense de seu pai, o futuro Rei D. Afonso IV, num misterioso “Alcácer de a par de S. Lourenço”. Aqui se verificou mesmo um rapto, o de D. Mécia mulher de D. Sancho II, durante as guerras civis que levaram ao exílio do Rei para ser substituído pelo seu irmão conde de Bolonha e Rei D. Afonso III.
A primeira dinastia portuguesa começou e terminou no Paço Real da Alcáçova, já que as Cortes de Coimbra de 1385 também tiveram aí lugar. Depois de 1537, o Paço Real viria a albergar definitivamente a Universidade de Coimbra, sofrendo profundas transformações ao longo dos séculos até ser o símbolo maior da Coimbra dos dias de hoje. Coimbra não é já a CIDADE RÉGIA que foi, mas sim a Cidade que muitos de nós amamos e queremos ver progressiva, agarrando o futuro com as duas mãos, mas não desprezando o passado, antes pelo contrário conhecendo-o e compreendendo-o em todos os aspectos, porque “só podemos amar o que conhecemos”.