O exercício prolongado da actividade de escrever crónicas semanais levanta, como suponho que os leitores facilmente compreenderão, alguns problemas a quem o pratica. Entre eles, a escolha do tema a abordar em cada semana, sem cair na posição a que muitos hoje chamam «tudólogo» que significará saber falar de tudo. Devo confessar que a minha experiência como escriba do «visto de dentro» há mais de 16 anos me tem ensinado a abordar questões concretas, tentando contextualizá-las da forma que me parece mais correcta em função das suas características próprias e evitando sempre introduzir moralizações espúrias. Sem esquecer o respeito pelo leitor que obriga a recusar manipulações que tantas vezes um simples adjectivo esconde. Por outro lado, há momentos em que a realidade se impõe de tal forma que obriga a deixar para trás o assunto que se pretendia abordar. É o caso desta crónica. O massacre sucedido numa escola básica na pequena cidade de Uvalde no Texas, EUA não pode ser uma destas matérias cujas imagens na televisão impressionam toda a gente durante dois dias para logo serem substituídas na atenção colectiva por outra tragédia nalguma parte do mundo ou mais um escândalo de corrupção.
Trata-se de um assunto difícil de abordar. Desde logo pela violência do sucedido, até por entre os 21 mortos se contarem 18 crianças alvejadas friamente, muitas delas directamente na cabeça. Depois, por o autor da tragédia ser um jovem com 18 anos, ele próprio também quase uma criança. A questão do acesso a armas nos EUA, supostamente para defesa pessoal, mas tantas vezes quase de guerra coloca-se novamente, sem qualquer dúvida. E, finalmente, a frequência com que situações deste tipo se verificam nos EUA é algo de impressionante.
De facto, estes tiroteios em escolas com consequências trágicas repetem-se com uma regularidade que perturba. Só neste século, lembram-se os seguintes: Em Abril de 2007 um estudante matou trinta e duas pessoas numa Universidade da Virgínia; em Abril de 2012 um homem matou sete pessoas numa Universidade na Califórnia; ainda em 2012, em Dezembro, um jovem de 20 anos matou vinte seis pessoas das quais 20 crianças pequenas numa escola primária no Connecticut; em Outubro de 2015 um estudante matou nove pessoas numa Universidade do Oregon; em Janeiro de 2018 um estudante com 15 anos matou dois colegas num liceu no Kentucky; em Fevereiro de 2018 um jovem matou dezassete pessoas num liceu na Flórida, de que tinha sido antes expulso; em Maio de 2018 um estudante de 17 anos matou dez pessoas num liceu no Texas; em Novembro de 2019 um jovem de 16 anos matou dois colegas de turma e feriu mais três, num liceu na Califórnia; em Novembro de 2021 um rapaz com 15 anos matou quatro colegas e feriu mais uns tantos num liceu no Michigan. Não se deverá esquecer a tragédia da Columbine High School no Colorado onde, em Abril de 1999 dois estudantes mataram doze colegas e um professor e, ainda assim, não conseguiram fazer explodir as bombas que levavam. Esta listagem faz pensar sobre quais as influências a que os jovens americanos estão sujeitos, que levam a que tantos sigam por este caminho.
Certamente uma cultura de violência que vai dos desenhos animados infantis até ao tipo de música ouvida permanentemente pelos jovens terá algo a ver com o que se passa. Tal como a normalidade da aquisição e posse de armas à sombra da Segunda Emenda da Constituição institui o sentimento de que as armas são algo de normal numa sociedade em que as armas têm um carácter quase religioso. Aplica-se aquela lei de 1791 como se as armas não tivessem evoluído e a letalidade das espingardas semi-automáticas de hoje fosse comparável à das armas daquele tempo e que as circunstâncias políticas e sociais de então se mantivessem até aos nossos dias. Acresce que, em muitos Estados, os cidadãos têm acesso muito facilitado àquele armamento, quase de guerra, a partir dos 18 anos.
Neste caso da semana passada, em Uvalde, o autor do massacre que acabou morto pela pelas forças policiais tinha um problema de gaguez que levava a que os colegas fizessem troça dele. Terá desenvolvido, certamente por uma conjugação desse facto com os elementos sociais que acima refiro, um carácter anti-social que o levou à violência extrema de entrar numa escola e matar crianças a sangue frio com tiros de espingarda semi-automática. O que, claro, não sucederia nunca numa sociedade pacífica e solidária com os mais frágeis e, também, se o acesso àquele armamento fosse muito mais difícil.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Maio de 2022
Imagem recolhida na internet