segunda-feira, 24 de outubro de 2022

DesTAPar a TAP

 


Já se imaginam os contornos do que poderá vir por aí e nem será necessária muita imaginação. A tradição tem muita força e basta não esquecer o que se passou com o Novo Banco. Recordando, para se encontrar comprador para o banco teve que se lhe garantir cobertura de prejuízos durante uns anos até um montante de mais de três mil milhões de euros. O que, como é evidente, foi pago porque prejuízos encontram-se sempre nestas situações, nem é preciso grande imaginação. Quem pagou, claro está, foram os portugueses através dos seus impostos, que o Estado só tem duas fontes de receitas: essa mesma e emissão de dívida.

Quanto à TAP, a companhia não sai das notícias, sempre por más razões, mesmo para além dos prejuízos crónicos.

Há poucas semanas foi a história da compra de 50 BMW’s para administradores e directores. As notícias iniciais referiam BMW’ de luxo, o que me deixa sempre de pé atrás, porque carros daquela marca podem ser, ou não, de luxo. Mas, afinal, veio também a saber-se que os carros eram afinal de gamas de luxo da marca e não de gama baixa ou média. Com a vinda a público da decisão da companhia aérea que, recorde-se, está completamente nacionalizada, a administração decidiu voltar atrás numa cambalhota incompreensível e suspender a compra dos 50 automóveis. Decisão incompreensível porque a compra tinha sido justificada com poupança face às despesas com a frota de Peugeot’s a substituir. Logo a seguir vieram notícias de que afinal não se tratava de 50, mas 79 veículos e que 29 já tinham sido entregues. Uma barafunda em que a administração da TAP ficou mal vista, mas sobre a qual não houve qualquer comentário do accionista, o Estado português representado pelo Governo.

Na semana passada foi a história da nomeação de uma nova directora relacionada familiarmente com o «personal trainer» do marido da presidente da companhia. Coincidência! justificou a administração da TAP: a senhora foi contratada por ser a melhor qualificada num processo de escolha com outros concorrentes ao lugar. Todos nós, que conhecemos como estas coisas se passam em Portugal, vamos fingir que acreditamos, tal como fez o accionista Estado, já que também não comentou este assunto.

Nestes dois casos trata-se, evidentemente, de decisões que são do âmbito da administração da companhia e não dos accionistas, pelo que o Governo até andou bem em manter-se (oficialmente) à sua margem. Mas que não beneficiam a imagem da companhia aérea junto dos portugueses, é certo que não beneficiam. Até porque o Governo meteu na TAP 320 euros dos impostos de cada um dos cidadãos portugueses que na sua maioria nem utilizam os serviços da companhia o que, convenhamos, não é coisa pouca principalmente nos tempos que atravessamos.

Aqui chegado, devo confessar a minha admiração pessoal, que não política, por Pedro Nuno Santos que, ao menos existe e vai ao confronto. Ao contrário de várias não-personalidades que actualmente dirigem ministérios sem que ninguém lhes ouça uma tomada de posição própria seja em que assunto for, Pedro Nuno Santos tem ideias próprias que defende com unhas e dentes. Não está aqui em causa se tem ou não razão e até me parece que muitas vezes não tem. Mas ao menos, existe e é coriáceo e não uma medusa mole, o que já é uma vantagem relativamente a muitos políticos de hoje, homens e mulheres.


Chamado ao parlamento para se pronunciar sobre o que se tem passado na TAP, área da sua responsabilidade governativa, Pedro Nuno Santos foi mais uma vez igual a si próprio. Afivelando o seu ar mais feroz, em total contraste com o ar com que se apresentou há semanas ao responsabilizar-se por asneiras graves relativamente ao novo aeroporto de Lisboa, o ministro passou ao ataque, numa das manobras de engano mais clássicas da política. E informou ter o governo enviado para o Ministério Público uma auditoria que mandou fazer quanto a uma compra de aviões pela TAP há uns anos. Até parecia que os deputados da oposição que tinha na frente tinham alguma coisa a ver com isso. Mas foi eficaz no objectivo pretendido. A comunicação social correu pressurosa atrás da negaça e os telejornais abriram todos com essa «notícia» em vez das questões anteriores.

No horizonte está de novo a privatização da TAP, como o primeiro-Ministro já reconheceu. Provavelmente alguma das grandes companhias internacionais vai absorvê-la, desaparecendo o tal «interesse estratégico» para Portugal que anteriormente justificou a sua nacionalização. E, contrariamente ao que sucedeu com o Novo Banco, o comprador nem terá que se segurar com os prejuízos de exploração futuros. Apenas porque já estarão garantidos com os mais de três mil milhões que os portugueses já lá meteram anteriormente.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Outubro de 2022

Imagens recolhidas na internet

terça-feira, 18 de outubro de 2022

As Cidades, geográficas e etimológicas

 


Segundo os dicionários, a palavra «cidade» tem a sua origem no latim, vindo de «civitas» que significava «condição de cidadão» que era quem vivia em cidade, significando hoje muito mais do que isso, como sabemos.

Ao longo dos tempos as sociedades evoluíram e é hoje claro que as cidades são cada vez mais os locais de preferência da humanidade para viver. Segundo a OCDE, mais de metade da população mundial vive já hoje em cidades, prevendo-se que em 2030 essa percentagem seja de 60% e em 2050 de 70%. Estes números são impressionantes, indo já longe os tempos em que as cidades eram apenas pontos de segurança e de recolha e redistribuição dos bens agrícolas. Ainda segundo a OCDE os centros urbanos são hoje o motor do crescimento económico, contribuindo para cerca de 60% do PIB global.

O crescimento das cidades traz evidentemente novos problemas, principalmente num tempo em que a sustentabilidade passou a ser um factor crucial para a própria existência da Humanidade. As questões relacionadas com a escassez da água, com as necessidades de energia do actual modelo de desenvolvimento e com a mobilidade têm que ser vistas como desafios à imaginação e capacidade tecnológica dos nossos tempos e não meramente como algo negativo.

Também entre nós se verifica o fenómeno da deslocação das pessoas para as cidades, com uma influência cada vez maior das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mas não só. No interior são as cidades médias que exercem um poder de atracção sobre os territórios vizinhos, como é o caso de Castelo Branco que como que suga a população dos municípios à sua volta. As cidades reflectem a evolução social. Por exemplo, em Coimbra, se a população aumentou cerca de 40% entre 1960 e os nossos dias, o número de famílias existente passou para quase o dobro, acompanhando o aumento de alojamentos; já o índice de envelhecimento calculado pelo número de idosos por cada cem jovens aumentou mais de seis vezes mas, claro, sem contar com os jovens que todos os anos procuram a Cidade para estudar aumentando em pelo menos um terço a população presente durante a maior parte do ano.


 

E é por estarmos tão habituados a ver as cidades como territórios de paz e progresso que se nos torna tão estranho que cidades, onde vivem milhares de pessoas de forma pacífica, possam ser objecto de violência militar como todos os dias podemos ver suceder nas cidades da Ucrânia, vítimas dos mísseis russos. Cidades esventradas, milhares de pessoas em fuga sem saber quando terão o azar de lhes entrar um míssil pela casa dentro e prédios inteiros que deixam de existir e passam a ser um buraco negro no meio dos sobreviventes. Claro que temos na memória as imagens de Londres e outras cidades inglesas a serem bombardeadas por aviões e pelas famosas V1 e V2 da Alemanha nazi, precursoras dos actuais mísseis, e da fuga das populações para os refúgios subterrâneos, mas não imaginaríamos poder assistir ao mesmo em nossas vidas: cidades e seus habitantes, homens, mulheres e crianças alvo de bombas assassinas de forma indiscriminada.

A cidade transforma-se no habitat natural da Humanidade, não só no aspecto físico ou geográfico. Entra também na nossa linguagem, ainda que não etimologicamente, mas de forma evidente. O leitor já reparou no número de palavras que contêm «cidade» como elemento morfológico? desde a publicidade à privacidade, da veracidade à capacidade ou da elasticidade à tenacidade, a cidade entra na nossa linguagem de forma quase permanente, o que é muito significativo dos tempos que vivemos.

Texto publicado originalmente no Dario de Coimbra em 17 de Outubro de 2022

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

As Pessoas


São por vezes pequenos simples momentos de realidade quotidiana que, mesmo apesar da sua aparente banalidade, inesperadamente nos transmitem emoções com uma força que não imaginávamos.

Num dia destes resolvi meter-me no carro de manhã cedo e ir por estradas desta minha Beira que me viu nascer e viver durante grande parte da vida e que amo de uma forma estranha e profunda. O objectivo era ir verificar o estado de uma casa de família na Aldeia de S. Francisco de Assis situada já na Beira Baixa, concelho da Covilhã, nos contrafortes sul da Serra do Açor, bem perto da Serra da Estrela. Para lá chegar, as estradas com muitas curvas encontram-se hoje em bom estado, ou mesmo muito bom, com excepção de um pequeno troço a seguir à barragem de Santa Luzia, já no concelho da Covilhã. Para quem não conhece esta barragem, aqui fica o desafio para uma visita, já que se trata de um local de beleza magnífica pela força transmitida pela Natureza, a que se junta um bom aproveitamento com parque de merendas, restaurante, bar e até uma piscina feita no interior da albufeira, com uma rede a proteger os banhistas. Ao alto da Pampilhosa da Serra, na nova estrada que serve o aeródromo dedicado ao combate a incêndios, a surpresa de um miradouro feito à maneira moderna, de forma a propiciar belas fotografias, para além de cadeiras que permitem, de forma confortável, apreciar uma paisagem de cortar a respiração. Curiosamente, e de forma de certa maneira algo surpreendente, as antigas aldeias dispersas pelos montes aparecem com as casas na sua maioria recuperadas, o que deverá ter razões que merecerão alguma análise posterior.

Na Aldeia de S. Francisco de Assis, antiga Bodelhão, é possível verificar a mesma situação, com bastantes edificações recuperadas. O que se torna estranho, dado que a larga maioria das casas não é ocupada em permanência, pelo abandono generalizado para outras paragens, incluindo emigração para a Europa e Américas. Para se ter uma ideia da actual e profunda desertificação, a população da freguesia é actualmente de 490 moradores, quando era de 2.508 em 1960. Estes números incluem o lugar da Barroca Grande, principal centro do couto mineiro das Minas da Panasqueira, o que significa que o número de habitantes da Aldeia é ainda mais reduzido, sendo a sede da Junta de Freguesia e o Centro Social Paroquial que apoia a terceira idade as principais (praticamente únicas) fontes de actividade.


Atingida a Aldeia que, apesar da distância a Coimbra ser de apenas cerca de 100 km, parece estar noutro mundo fiz a visita à casa da família o que aconteceu pela primeira vez sem companhia. Habitualmente vou com filhos e mesmo netos, o que não sucedeu desta vez. Razão para que o choque das memórias tenha desta vez sido fortíssimo. A recordação dos pedaços de vida feliz ali vividos desde tenra idade surge de forma estranha perante as paredes que já não abrigam ninguém, porque quem lá viveu já partiu há muito. E a consciência de que as memórias dessas pessoas, das situações vividas em comum, dos afectos, tudo isso continua apenas dentro de nós e connosco desaparecerão um dia. Ainda que se regresse aos locais onde se viveu, tal não deixa de ser verdade.

O que significa que, ao fim e ao cabo, as pessoas é que importam na nossa vida. Em tempos, ouvi um famoso Físico afirmar que muitas vezes o Homem tem o desejo de descobrir uma máquina que permita viajar no tempo, quando essa máquina já existe, na forma dos nossos filhos, netos e por aí fora.

Quando nos defrontamos com as nossas memórias e o passado, feliz ou menos feliz, regressa às nossas mentes podemos tomar a consciência de que somos apenas um elo numa corrente muito antiga e que esperamos ainda venha a durar muito tempo. E que, de facto, aquilo que verdadeiramente importa neste mundo são as pessoas e as relações que somos capazes de construir. Muito para além de paredes mais ou menos ricas e de bens materiais que hoje poderão parecer importantes, mas que no futuro alguém observará como meras curiosidade de um tempo que já foi.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Outubro de 2022

Fotografias da minha autoria 

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

O novo Dr. Estranhoamor

 


Muitos leitores destas linhas lembrar-se-ão certamente de um filme de 1964 de Stanley Kubrick, aliás um dos melhores filmes do realizador, que abordou o clima da Guerra Fria e inerente e perigoso equilíbrio baseado na ameaça nuclear bi-lateral.

Trata-se de uma comédia negra, em que sobressaem as três interpretações de Peter Sellers, para além de outros excelentes actores. Dizem os especialistas que Stanley Kubrick começou por abordar o romance «Alerta Vermelho» de Peter George como um filme sério, mas que depressa mudou o registo atendendo ao caricato da maioria das situações, embora baseadas numa realidade que pareceria impossível de acontecer. No filme, um general americano convence-se de que os soviéticos estão prestes a atacar os americanos. E decide bombardear uma cidade russa através do envio de um avião com bomba nuclear. Descoberto o incidente, os governantes dos dois lados tentam impedir o desastre nuclear, mas a tragédia é que ambas as potências se haviam dotado de sistemas tecnológicos independentes de comando humano, prontos a lançar um ataque nuclear maciço, perante um ataque do outro lado. O filme está repleto de cenas satíricas num ambiente de total insanidade em que parece que os únicos intervenientes com alguma sensatez são os dois líderes políticos máximos de um e outro lado e vale sempre a pena ser revisto.

Mas acontece, por vezes, que a realidade consegue ultrapassar a ficção mais delirante. E estamos neste momento a viver um momento de extrema gravidade e perigo extremo, dada a atitude de um líder político de um país possuidor de um enorme arsenal nuclear que decidiu usá-lo, para já, como arma psicológica de apoio à invasão de um país independente e anexação de territórios. Tudo o que Putin tem feito desde que em Fevereiro passado iniciou a invasão militar da Ucrânia faz lembrar as insanidades do filme de Kubrick. Os ditos «referendos» nos territórios ucranianos sob o domínio militar russo, condenados e considerados sem qualquer valor legal por quase todos os países do mundo e mesmo pela própria ONU fazem ainda lembrar as anexações de Hitler antes do eclodir da Segunda Guerra Mundial. As explosões submarinas dos gasodutos do Báltico são apenas mais um passo na guerra que Putin quer travar com todo o Ocidente cuja cultura liberal odeia, a começar pela Europa com as suas liberdades políticas, sociais e económicas. Tal como o general Jack D. Ripper se convenceu de que os «comunas» queriam destruir a América por dentro, o antigo chefe dos espiões soviéticos na Alemanha Oriental que hoje governa a Rússia está convencido de que os «decadentes liberais» do Ocidente não pretendem senão destruir a civilização que quer para o seu país e para o mundo. E, como se viu na semana passada, tem o apoio verdadeiramente inacreditável (ou se calhar, talvez não) do Patriarca Kirill de Moscovo, líder da Igreja Ortodoxa Russa, que exortou os russos a irem «corajosamente» para a guerra na Ucrânia, prometendo aos que morrerem que «entrarão no reino de Deus, garantindo a própria glória e vida eterna». O conselheiro Dr. Estranhoamor não diria melhor, enquanto certamente levantaria automaticamente o braço direito.


A cerimónia patética da passada sexta-feira da entrada de quatro províncias ucranianas na Federação Russa (ia dizer União Soviética, nem sei porquê) ultrapassou tudo o que Kubrick imaginou para o seu filme delirante e deverá constar nos anais da História ao lado da assinatura do inesquecível Pacto Molotov-Ribbentrop. Putin imagina-se um sucessor dos czares russos, mas é apenas mais um ditadorzeco que, em vez de trabalhar para conseguir desenvolvimento e bem-estar para os seus cidadãos, pretende ter um grande país que cresce pelo poderio militar e subjugação dos povos, os seus e os vizinhos. Terão de ser os russos a acabar de vez com esta loucura.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Outubro de 2022

Imagens retiradas da internet