segunda-feira, 26 de junho de 2023

A RESILIÊNCIA (REAL) DA SOCIEDADE PORTUGUESA

 


Temos assistido recentemente a fenómenos de alterações sociais que, por se darem de forma gradual e não instantânea como as revoluções, nem por isso deixam de ser profundas e de, mais cedo ou mais tarde, se manifestarem com uma força que não se imaginaria possível.

As políticas educativas dos últimos anos têm tido consequências à primeira vista imprevisíveis, dado que os seus responsáveis estão sempre a defender a escola pública. Na realidade, as lutas dos professores têm trazido à tona situações laborais insustentáveis pela sua profundidade e duração. Como consequência, a desmotivação dessa classe profissional, com um papel crucial em qualquer sociedade desenvolvida, é uma evidência e acarreta problemas graves no que verdadeiramente importa em qualquer sistema educativo, que é a formação dos alunos. A burocratização da função educativa, bem como a permanente desautorização dos professores diminuem-lhes gravemente a capacidade de ensino, transformando-os em funcionários de um sistema desumanizado permanentemente em conflito. Quem sofre mais são os alunos mais carenciados, que vêem o sistema ser cada vez menos uma escada de ascensão social, potenciando o crescimento das desigualdades, sempre injustas. O fim dos contratos de associação veio ajudar, eliminando a possibilidade de alunos com menos posses acederem a um ensino diferenciado e de qualidade. Só para dar um exemplo, aqui ao lado em Espanha, como em muitos outros países europeus, os contratos de associação mantêm-se, mesmo com governos muito à esquerda. Se havia exageros ou incumprimentos, isso resolvia-se com a Justiça, sem deitar a água fora com o bebé, puramente por motivos ideológicos. Todos sabemos dos defeitos dos rankings escolares que têm dificuldade em integrar os problemas sociais locais. Mas há uma evidência que ressalta deles e de que é impossível fugir, por mais defeitos que tenham: a variação ao longo dos últimos anos que consiste na descida sistemática e contínua das escolas públicas dos lugares cimeiros. Nas primeiras quarenta escolas não aparece uma única pública! Lembram-se de que há uns anos a Escola Secundária D. Maria aqui em Coimbra era sistematicamente uma das primeiras? Onde já vai esse tempo. Como resultado disto tudo, os colégios privados nascem e desenvolvem-se sem mãos a medir, com milhares de pais a fazerem sacrifícios enormes para poderem pagar as propinas, preocupados com o futuro dos seus filhos.


Tal como tem vindo a acontecer no Serviço Nacional de Saúde. Da falta de médicos de família às maternidades, passando pelos atrasos nas consultas e cirurgias, parece não haver maneira de resolver os problemas gravíssimos do SNS. E não é certamente por falta de dinheiro, mas por incompetência e incapacidade política de fazer reformas. Nomear uns gestores nacionais para o SNS pode resolver uns problemas pontuais e ir iludindo o inevitável, mas quem tem a responsabilidade última é o Governo. E não estou a esquecer as ilhas de excelência do SNS, que as tem, nem a importância e significado do SNS para os portugueses em geral. Mas o acesso rápido e universal à prestação dos serviços é essencial para a sua eficácia. Também no SNS se assiste à fuga por parte de quem tem possibilidade financeira para o fazer, mesmo com grandes sacrifícios; a crescente subscrição de seguros privados de saúde, que já se conta por vários milhões, bem como a proliferação de hospitais privados é a prova disso mesmo. E como é que se compreende que o Governo tenha acabado com Parcerias Publico Privadas que saíam mais baratas ao Estado e prestavam cuidados de saúde de mais qualidade do que acontece actualmente com gestão pública, como é publico e notório, por exemplo, em Braga e em Loures?

A pressão ideológica colocada pelo Governo sobre estas áreas de governação tem como efeito um reequilíbrio praticado pelos cidadãos que ao passarem para os serviços oferecidos pelos sectores privados, embora à sua própria custa, estão também a baixar a pressão sobre os serviços estatais. Até poderia ser positivo se isso significasse uma descida da despesa estatal, mas incompreensivelmente tal não acontece. O que faz dos portugueses dos cidadãos que mais despesa têm com cuidados de saúde na Europa. Mas a resiliência da nossa sociedade perante a pressão estatal é que se torna verdadeiramente impressionante.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 Junho 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 19 de junho de 2023

O insustentável peso da negação

 


Não foi certamente o acaso que determinou o insucesso das duas últimas sessões comemorativas que houve em Portugal, as mais importantes e significativas que temos na actualidade. Numa se comemora a própria existência de Portugal como país independente e noutra a fundação do regime democrático. Momentos que era suposto serem de júbilo e celebração colectiva transformaram-se em sinais de profunda tensão social e, pior, de denegação política da existência dessa mesma tensão. Em 25 de Abril, ao celebrarem-se os 49 anos do regime, vieram à tona incapacidades de aceitação da diferença que, em mistura com desrespeito pelo representante máximo do maior país que de nós saiu, o Brasil, levaram a que se a Assembleia da República se transformasse em palco de uma autêntica vergonha colectiva. No 10 de Junho, toda a festa e significado do local das celebrações ficaram escondidos por detrás de uma manifestação de professores que, ao destratarem na via pública o Primeiro Ministro em momento festivo, se diminuíram a si mesmos, enfraquecendo a própria luta reivindicativa que vêm mantendo há longos meses. Não se pense que esta minha visão constitui uma manifestação pessoal de “respeitinho bonito”, que não é de todo o caso. Lamentando que haja quem não perceba a diferença estre as diversas situações e circunstâncias saliento haver, no entanto, algo que une estes dois momentos, para além da má-educação evidenciada: a prova de que os extremos se unem em muito mais do que possa parecer à primeira vista, já que num se manifestou a extrema-direita e noutro a extrema-esquerda.

Mas estas manifestações evidenciam ainda uma insatisfação colectiva profunda que os extremistas aproveitam para os seus intentos imediatos, enquanto os responsáveis políticos moderados assobiam para o lado, deixando o terreno cada vez mais aberto precisamente para os extremistas.

Os momentos de celebração colectiva, ao contrário de manifestações de auto-satisfação, bem poderiam servir para se fazer uma avaliação do que tem sido feito nas últimas décadas, de bem mas também de mal feito. Até porque as sondagens indicam que os portugueses estão a tomar consciência de muitas coisas. Como o Expresso indicava há uma semana, 90% dos portugueses estão insatisfeitos com a distribuição de riqueza, 91% com o nível de impostos sobre o rendimento, 74% com o SNS, 68% com a educação pública e 87% com o combate à corrupção. Estes apenas alguns dos indicadores da insatisfação dos portugueses. Terá sido um balde de água gelada para os apoiantes do actual Governo que se afadigam a tentar mostrar que Portugal é um autêntico oásis na União Europeia.


A realidade é que o ordenado mínimo se aproxima cada vez mais do ordenado médio dos portugueses, com o que isso significa de destruição das classes médias cada vez mais proletarizadas. A saída de jovens portugueses com formação superior à procura de condições de vida de acordo com os seus sonhos e capacidades lá fora é cada vez mais uma realidade, enquanto um grande número permanece em casa dos pais até aos 33 anos, quando a média europeia é de 26. Não nos podemos admirar com a ocupação do espaço público de forma ostensiva por parte dos extremistas, sejam de esquerda como na Régua, ou de direita, como na Assembleia da República. 

É verdadeiramente aflitivo que, precisamente numa altura em que as transferências de fundos europeus estão a ser gigantescas como nunca, o nosso crescimento nos últimos 20 anos tenha sido, em média, de 0,55% ao ano. Isto nos últimos vinte anos!

Temos de mudar de caminho. Em nome do futuro de filhos e netos.

Infelizmente, não vai ser fácil. Escondem-se os políticos do sistema, do PS e do PSD em estado de negação. Uns por prosseguirem com políticas corruptas e extractivas que levam paulatinamente, mas seguramente, o país para o lugar de mais pobre de toda a União Europeia. Outros porque, ou não têm coragem para o fazer, ou porque nem vêem necessidade de propor uma alternativa evidente, se apresentam apenas como mais competentes para fazer o mesmo, apenas melhor, enquanto aguardam pela saída de quem está.

Toda a organização política tem de ser repensada e verdadeiramente descentralizada. Os impostos sobre o rendimento e o trabalho têm de diminuir. Tal como sobre as empresas. A melhoria da rentabilidade da economia tem de passar a ser um desígnio nacional; não nos podemos tornar em empregados de café e de hotelaria dos europeus ricos, com todo o respeito por essas profissões.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de  Junho de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 12 de junho de 2023

A vida em palavras escritas

 


Sempre tive uma ideia muito clara sobre a existência das crónicas nos jornais, como esta. E é a de que uma crónica não vive por si e sim, por pressupor alguém que a escreve e também os seus leitores que a apreciam, quer de forma favorável ou não. Aliás, quando é escrita, o seu autor bem pode convencer-se de ter uma consciência clara do tipo de reacções que eventualmente provocará, que frequentemente estará redondamente enganado, como já tantas vezes sucedeu com o autor destas linhas.

Esta série de crónicas semanais a que chamei “visto de dentro” está prestes a fazer 18 anos. Não é a minha primeira série de crónicas, houve outra anterior, mas é de longe a de maior duração. A primeira crónica saiu depois de acertar pormenores com o Arménio Travassos que aqui recordo com saudade, bem como o seu Pai, o Sr. Travassos, excelente pessoa e que foi um competentíssimo funcionário da Câmara Municipal de Coimbra com quem tive o gosto e a honra de trabalhar.

A consciência de que as crianças nascidas pouco tempo antes de a primeira crónica sair no jornal já podem votar em eleições transmite uma sensação algo estranha, agravada pela circunstância paralela de muitos leitores e amigos não estarem já entre nós, pela lei inelutável da vida. Ao longo de tantos anos de crónicas, perante todos os leitores, os novos e mesmo os que já nos deixaram, há algo que tentei que se mantivesse constante: o respeito por eles. Tal obrigou a assumir sempre a responsabilidade pelas afirmações, mas mantendo sempre claras as ligações pessoais, aos mais diversos níveis, sejam político-partidários, religiosos, sociais ou outros. Penso que mesmo o facto de ter militado num partido, o PSD, durante longos anos, nunca me retirou capacidade de análise própria, fugindo sempre a fazer qualquer espécie de proselitismo.

Mas o que era verdade há quarenta e tal anos não o é hoje. A sociedade portuguesa evoluiu, a Democracia também e os próprios partidos têm pouco a ver com o que eram no início do regime em que se afirmavam pela definição ideológica, mas também pelas lideranças que se haviam imposto na política, mas também fora dela. Atualmente, os partidos, e falo essencialmente dos que se situam ao centro, mais à esquerda ou mais à direita que a outros não poderia nunca aderir, isto é o PS e o PSD, tornaram-se máquinas de poder seja para o conquistar, seja para o manter. As lideranças, sejam nacionais sejam locais surgem quase sempre através de carreiras feitas nas juventudes partidárias, sem ligação efectiva à realidade e, consequentemente, sem perceberem sequer o que se passa à sua volta e muito menos terem consciência das consequências das suas decisões. A mais que evidente necessidade urgente de alterar as leis eleitorais de forma a aproximar os eleitores dos eleitos é negada e rejeitada pelos dois partidos que também nessa matéria agem como donos da Democracia. O estado de degradação evidente do relacionamento entre grandes sectores sociais e políticos entre instituições, e mesmo entre pessoas, dever-se-á muito, a meu ver, a esta incapacidade de rever e reformar o sistema político. Outra consequência é o extremar de posições que coloca tanta gente a falar sozinha.

Como é evidente, com esta análise da situação política e social e embora continuando conv


icto da bondade da Democracia sobre todos os outros regimes e, portanto, da imprescindibilidade dos partidos políticos, o abandono da militância partidária tornou-se-me uma obrigação. Não posso afirmar que todos os líderes partidários do passado eram melhores que este ou aquele líder dos dias de hoje, mas algo me parece claro: em termos médios, a degradação do pessoal político é evidente e mesmo por vezes confrangedora. Por outro lado, militar num partido não pode ser semelhante a ser adepto de um clube de futebol: neste caso, a emoção tudo permite enquanto naquele a razão tem de apoiar programas e protagonistas com quem tem de estar de acordo. Consequentemente, se a minha independência de opinião era já um facto, hoje é-o com muito mais facilidade.

O avançar da idade, e vou iniciar nesta semana a minha septuagésima volta em torno do Sol, deve ajudar a que minha perspectiva da realidade seja hoje a que é. Mas não se pense que seja sinónimo de desistência de intervenção cívica que continuo a considerar um imperativo. Regressando à primeira crónica desta série, continuo a concordar com algo que lá estava escrito e que é achar que, em vez de optimistas ou pessimistas, o que devemos ser é optimizadores.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Junho de 2023

Imagens recolhidas na internet