segunda-feira, 1 de abril de 2013

O NARRADOR PRESO NO LABIRINTO DA SUA NARRATIVA



O termo “narrativa” entrou subitamente como um furacão na linguagem comum. Dos dicionários aprendemos que uma narrativa é uma história contada por alguém, relatando um conjunto de acontecimentos, reais ou imaginários, com intervenção de uma ou mais personagens num espaço e num tempo determinados (Dic. Priberam de Língua Portuguesa). Em política, começou-se a chamar “narrativa” à interpretação da realidade feita pelos adversários, logo longe da realidade. Foi assim que, numa entrevista recente, um político que teve grande relevância até há pouco tempo, atribuiu essa designação de forma obsessiva a todas as intervenções que não lhe interessavam. Mesmo as perguntas feitas com intuito obviamente jornalístico, passaram a ser parte de determinada “narrativa” que pretenderia construir uma interpretação errada ou mesmo falsa do que tem acontecido no país nos últimos anos: a utilização da velha técnica de não responder a uma pergunta, antes interpretando o interesse do perguntador em formulá-la.
A tal narrativa dos jornalistas reflectiria apenas que os actuais detentores do poder político, teriam montado toda uma ficção sobre o que tem acontecido em Portugal primeiro, para tomarem o poder, e depois para procederem a uma sistemática e desejada destruição do país.
O autor desta tese, embora possa ter aprendido muita filosofia política em pouco tempo, no seu afã de proceder à sua vingança pessoal não se dá conta de várias coisas. Em primeiro lugar, ao classificar qualquer outra perspectiva da realidade como uma “narrativa”, está-se a colocar na posição de querer impor a todo o custo a sua própria “narrativa” que não passa disso mesmo: a sua narrativa. A introdução do relativismo exacerbado na análise política distorce a realidade, escondendo a verdade dos acontecimentos sob um monte de manipulações e misturas de mentiras com meias verdades. E a longo prazo isso não pode ser bom para ninguém, incluindo os próprios manipuladores.
Depois, todos conhecemos bem a tentação em reescrever a História. Isso tem sido feito ao longo dos tempos das mais diversas formas. Desde as crónicas antigas, até às memórias escritas pelos modernos líderes políticos no fim das suas vidas públicas, puxando pelos aspectos positivos e eliminando ou amenizando outros. Temos ainda os processos mais radicais, como fazia Estaline ao limpar das fotografias oficiais os camaradas caídos em desgraça.
Mas há algo mais perigoso para o próprio protagonista quando ele pretende ainda, e de forma evidente continuar a ser interveniente activo, cavalgando tudo e todos de forma brutal, incluindo aqueles que lhe sucederam politicamente. Vivemos numa sociedade aberta, e se alguns ainda têm medos ancestrais do poder ou de quem o possa vir a ter, a verdade tem hoje processos de vir ao de cima, sem contemplações. E quem pretende reescrever a História impondo as suas narrativas a toda a força, arrisca-se a ter um choque frontal e violento contra a realidade dos factos indesmentíveis e patentes à frente de toda a gente. A meu ver, é isso mesmo a que estamos todos a assistir neste momento. O que se vai suceder não será certamente muito bonito de se ver mas será a prova de que não é possível enganar toda a gente durante o tempo inteiro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Abril de 2013

segunda-feira, 25 de março de 2013

É só esperar.

Eurogrupo admite que Chipre vai ser exemplo a seguir em caso de problemas na banca - Zona Euro - Jornal de Negócios

DRONE FINANCEIRO SOBRE NICOSIA


A ilha de Chipre localizada estrategicamente no Mediterrâneo, bem perto do Médio Oriente e que desde 1974 se encontra dividida entre gregos e turcos, experimentou na semana passada os efeitos uma nova arma financeira comandada a milhares de quilómetros de distância. Face aos apertos do sistema financeiro cipriota, a Alemanha resolveu inventar uma nova solução e levar o Eurogrupo a impô-la aos cipriotas: um imposto directo sobre todos os depósitos bancários.
Mais uma vez um país está refém dos desmandos do seu sistema financeiro, isto é, dos seus bancos. Ao longo dos anos, este pequeno país com cerca de 800.000 habitantes viu os seus bancos crescer de uma forma perfeitamente desmesurada. Num país com um produto a rondar os 18 mil milhões de euros, o que representa apenas 0,2% da economia da zona euro, o sistema bancário chegou a deter 128 mil milhões de activos. Claro que isso foi resultado de uma política agressiva de atracção de capitais através de baixa taxação e de altos juros, que se aproximou muito de fábrica internacional de lavagem de dinheiro, intensamente aproveitada por russos e árabes. Os bancos cipriotas investiram muito desse dinheiro em dívida pública grega, pelo que a famosa renegociação dessa dívida com os credores privados levou inexoravelmente à sua pré-falência obrigando-os, por sua vez, a renegociar as dívidas aos seus depositantes. Contas feitas, a necessidade de fundos para equilibrar o barco será de 15,8 mil milhões de euros, coisa até pequena face aos valores dos resgates da Grécia, de Espanha e até de Portugal.
Sucede, no entanto, que desta vez a Troika, seguindo a “sugestão” alemã, resolveu inovar no “desenho” da solução. Se aprovava um empréstimo de 10 mil milhões, para o valor restante resolveu não ficar à espera dos resultados de reformas e encontrou uma maneira de obrigar Chipre a obter de imediato os restantes 5,8 mil milhões, através de um imposto sobre todos os depósitos bancários. Deixando em paz os accionistas dos bancos e os responsáveis pela regulação que, mais uma vez, ficaram a descansar na forma, a troika enviou um drone comandado pelos eurocratas que tudo definem a partir dos seus gabinetes em Bruxelas.
O parlamento cipriota rejeitou liminarmente esta solução, o que levou a que o governo tentasse negociações com a Rússia que se revelaram igualmente infrutíferas. Um plano alternativo apresentado a Bruxelas foi igualmente recusado. Entretanto, foi possível ouvir ameaças claras absolutamente insuportáveis para um país soberano, ainda que necessitando de apoio financeiro, ao proibir-se Chipre de encontrar solução fora da troika e ameaçando com a paciência da mesma (melhor dizendo, da falta dela). Suspeita-se que pelo meio estarão os interesses russos sobre o gás natural cipriota cobiçados igualmente pela Alemanha, hoje em completa dependência da Rússia nesse aspecto.
Toda esta história, que ainda não terminou, põe em cima da mesa pelo menos três aspectos que nos interessam directamente: o sistema bancário europeu continua a ser fonte de problemas gigantescos para todos, excepto os donos dos bancos; os burocratas de Bruxelas perderam todos os pruridos para obter os seus fins, inclusivé enterrando a Democracia; por fim, e com pena o digo, não estamos livres de que num dia destes Bruxelas não envie um drone para Lisboa e outras capitais com os mesmos comandos do que foi até Nicosia confiscar os depósitos particulares. Isto porque no Eurogrupo todos aprovaram essa medida, incluindo Portugal, pelo que depois não se poderão queixar, quando o drone os visitar.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Março de 2013

segunda-feira, 18 de março de 2013

Dame Kiri Te Kanawa sings "Ah! je ris de me voir si belle"

CAVALO DE TRÓIA



Ao longo dos séculos, a Humanidade foi desenvolvendo simbolismos que, só por si, dizem mais de muitas situações do que grandes e elaborados discursos.
Durante a Guerra de Tróia, os gregos verificaram a sua incapacidade para tomar Tróia pela força, após longo cerco sem consequências de maior para a cidade sitiada. Os sitiantes decidiram então montar uma grande operação de retirada logo festejada pelos troianos que, pela manhã, tiveram oportunidade de verificar que os gregos tinham deixado para trás um grande cavalo de madeira. Tomando a estátua como símbolo da sua vitória, transportaram-na para o interior das muralhas e deram largas à sua alegria com festas prolongadas bem regadas com vinho.
O resto da história também é bem conhecido. Quando os troianos descansavam exaustos pelos seus festejos, do interior do cavalo saíram soldados gregos que abriram os portões ao regressado exército grego, possibilitando assim a conquista e destruição da cidade até então inexpugnável, causando a desgraça e morte dos seus habitantes. Se o “Cavalo de Tróia” é símbolo de esperteza e foi motivo de júbilo para que o utilizou, pelo outro lado o seu simbolismo ficou ligado à arrogância, cegueira e desgraça de quem o meteu dentro das muralhas da Cidade que devia defender.
Os troianos morerram e a morte é também motivo de simbolismos, muitos deles de ordem religiosa, tendo dado origem a imensas manifestações artísticas, também musicais, como atestam as numerosas composições de “Requiem”. A Primavera que chega dentro de três dias é igualmente um símbolo poderoso: o da vitória da vida sobre a morte, da cor sobre o cinzento, da alegria sobre a tristeza. O ponto vernal que marca a passagem da eclíptica para norte do equador celeste assinala o início do período do ano em que os dias vão ser maiores que as noites, em que há mais luz que escuridão. Certamente não por acaso, é também nesta altura do ano que a cristandade celebra igualmente a sua Páscoa, a sua festa maior, a única que verdadeiramente dá razão de ser ao cristianismo. Por todos estes motivos, numerosas composições musicais celebram esta alegria, motivo por que se chamam “Aleluia”.
Caro leitor, pode pensar que os símbolos não são hoje em dia mais do que um arcaísmo destinado apenas aos livros e a quem se dedica ao estudo da História. Nada de mais errado, já que a Humanidade evoluiu muito na sua organização e na satisfação das necessidades essenciais e mesmo das inventadas, mas os homens e mulheres continuam a ser o mesmo: pessoas que sonham, amam e desejam construir um futuro melhor para si e para os outros. Claro que a inveja e a destruição não desapareceram da face da Terra. Mas a História deixou-nos ainda um aviso que devemos ter presente: Roma não paga a traidores e, quem se convence de que pode suceder o contrário, tem normalmente dissabores desagradáveis.
E é mesmo verdade: depois do Inverno vem sempre a Primavera.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Março de 2013


http://youtu.be/cQgd0vx3nYM



segunda-feira, 11 de março de 2013

11 DE MARÇO

Há poucos dias tive a oportunidade de assistir a uma entrevista televisiva de uma senhora que se apresentava como historiadora e que foi amplamente distribuída pela internet. Durante algum tempo foi debitando os comentários habituais sobre a austeridade, sobre o neo-liberalismo, sobre a venda ao desbarato das grandes empresas públicas aos estrangeiros, sobre a indignação, etc. O habitual. Questionada sobre quais as saídas alternativas à troika, já que só por nós não nos conseguimos financiar para o país viver o simples dia-a-dia, saiu-se com a recordação das nacionalizações de 1975 que, segundo a historiadora, até deram bom resultado.
Como se dá a circunstância de hoje ser o dia 11 de Março, aproveito a oportunidade para recordar essa data. Na sequência do 25 de Abril e do 28 de Setembro, vivia-se então o PREC, sendo presidente da República o General Costa Gomes e primeiro-ministro o Coronel Vasco Gonçalves. Entre manifestações permanentes e lutas mais ou menos escondidas entre PCP e extrema-esquerda pelo controlo do MFA, o país vivia num sobressalto permanente, sem se perceber para que tipo de “socialismo” se iria virar, já que fora disso parecia não haver nenhum caminho possível. A certa altura começou a circular um boato sobre uma suposta “matança da Páscoa” que estaria a ser preparada pelas forças extremistas de esquerda. Tal bastou para que os spinolistas, afastados da decisão política a partir da demissão de Spínola na sequência do 28 de Setembro, tentassem um golpe militar, precisamente em 11 de Março de 1975. A derrota foi completa, tendo parte das conversações entre os militares no terreno sido feitas em directo, diante das câmaras de televisão e do microfone de Adelino Gomes, uma originalidade bem portuguesa.
Poucos dias depois, surgiam as nacionalizações em força, tendo o recém-formado Conselho da Revolução tomado a decisão de nacionalizar a banca e os seguros em 14 de Março, a que se seguiu boa parte da economia. Em pouco tempo o estado era proprietário de mais de 1.300 empresas, incluindo hotéis, fábricas de transformação de tomate, de cerveja e mesmo barbearias. No fim desse Verão, o Estado detinha o controlo de 20% do PIB e as nacionalizações eram consideradas fundamentais para a transição para uma sociedade socialista na Assembleia do MFA de 19 de Abril.
O que se seguiu é bem conhecido. Pouco tempo depois, logo em 1978, estávamos a chamar o FMI pela primeira vez, para nos ajudar perante o descalabro das contas públicas e da economia. Esquecido o “caminho para o socialismo”, com todas as garantias sociais na “Constituição mais avançada do mundo”, mas sem dinheiro para as pagar, viemos lentamente a descambar até à actual situação em que temos a taxa mais elevada de auto estradas por habitante da Europa, sem dinheiro para as pagar e sem carros a passarem por lá. Sem produção, endividadíssimos, com contas públicas deficitárias, com desemprego galopante, vemo-nos obrigados a vender os anéis, isto é, os resquícios empresariais das nacionalizações de 75. E ainda temos que ouvir os disparates de “historiadoras” que não conseguem outras saídas senão voltar aos erros crassos das nacionalizações! Haja paciência.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 11 de Março de 2013