segunda-feira, 1 de setembro de 2014

SAUDADES DA GUERRA FRIA?



A queda do muro de Berlim varreu o regime comunista para as estantes da História, mas desengane-se quem pensou que a bipolarização dos tempos da guerra fria tinha terminado para sempre, com o estabelecer definitivo do império americano. Nem, como se sabe, os impérios da História duram para sempre nem as notícias sobre o desaparecimento da Rússia juntamente com a ex-URSS deixaram de ser manifestamente exageradas. Claro que a fraqueza súbita no centro do antigo império soviético permitiu a separação e independência de países que foram anexados na formação da ex-URSS em 1922 e após a II Guerra Mundial, neste caso os que na prática estavam ocupados pelos exércitos soviéticos desde a sua marcha para ocidente no combate à Alemanha hitleriana, construindo aquilo a que Churchill chamou “Cortina de Ferro”.
Os anos de governação de Boris Yeltsin e da reestruturação da organização interna russa significaram um apagamento do papel da Rússia no contexto mundial. Mas o novo regime acabou por se definir dentro da lógica de economia de mercado, embora com uma grande intervenção do Estado. Há aspectos da Rússia que na realidade não mudam muito, estejam os antigos czares no poder, os comunistas ou agora o actual regime e um deles é a desmesurada capacidade interventiva do Kremlin em todos os aspectos da vida do país, seja na política, seja na economia. Como se trata de um país de grandes dimensões e com populações de diversas origens e histórias, uma certa visão que podemos considerar imperialista não está também nunca muito afastada das práticas governativas do Kremlin. Essa visão abrange ainda uma vontade de influenciar definitivamente os países que se situam junto às suas fronteiras, principalmente na zona ocidental. Acresce que, durante a existência da União Soviética o poder moscovita considerou os países anexados à União como pertencendo-lhe para sempre, pelo que por eles foi distribuindo infraestruturas diversas, incluindo estruturas militares e ainda fábricas de equipamento militar.

Tudo isto explicará boa parte da acção de Putin nos dias de hoje, mas não lhe dá razão em tudo ou mesmo em grande parte do que se passa hoje na Ucrânia, ainda que a inclusão do “celeiro da Europa” na ex-URSS viesse já dos anos 20 do século XX. De facto, a inclusão da Crimeia na Federação Russa em Maio do corrente ano fez-se à margem de todos os tratados internacionais assinados pela própria Rússia em 1991. A Ucrânia que, lembre-se, é o país totalmente europeu com maior dimensão territorial, aprendeu à sua custa que não podia contar com ajuda da União Europeia ou mesmo dos Estados Unidos, para além de votações das Nações Unidas ou uns comunicados piedosos mas inócuos a condenar a acção militar de Putin na Crimeia. Putin vive e governa com toda a confiança no novo sistema de tipo capitalista da Federação Russa, mas não sendo comunista nem lá perto, não prescinde de deixar bem claro que não apreciou nada o que Mikhail Gorbachev acabou por fazer à ex-URSS com a sua “glasnost” que, juntamente com a famosa “perestroika” acabou não por reestruturar a União Soviética mas por a destruir por dentro ao libertar todas as tensões acumuladas e sustidas com mão de ferro pelo Partido Comunista desde os tempos de Lenin.
Após a anexação da Crimeia, Putin avançou com técnicas de subversão no leste da própria Ucrânia, apoiando sectores que defendem a separação de parcelas do território da Ucrânia e da sua integração na Federação Russa. Desta vez o governo de Kiev reagiu militarmente e avançou com tropas para reocupar aquele território, até agora com relativo êxito, dado que a área dominada pelos separatistas é já muito reduzida. Com a previsível derrota militar dos separatistas, chegou-se a um ponto em que a diplomacia tem que intervir, sob pena de as consequências desta guerra europeia, dado que se trata efectivamente de uma guerra, poder alastrar com consequências imprevisíveis, que necessariamente surgiriam no caso de uma intervenção militar russa directa no território da Ucrânia.
Pelo menos por uma vez, a União Europeia tem que se mostrar à altura da exigência do momento e não deixar pendurado um país europeu que pretende ter relações privilegiadas com ela, mostrando-se firme perante a atitude da Federação Russa, mas tendo em conta a História da região; a Ucrânia deve continuar una, mas com soluções próprias e democráticas para as pequenas zonas em que a população é maioritariamente pró-russa. Por seu lado, Putin deve compreender que o respeito pelos tratados internacionais e pela soberania dos países limítrofes é a única garantia de respeito da comunidade internacional e que garante à Federação Russa o papel importante que deve ter no equilíbrio europeu e mundial. O regresso a uma situação de guerra fria é mau para todos e seria um passo atrás no desenvolvimento económico e na liberdade no mundo.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

AINDA OS BANCOS



A lista dos bancos que, um pouco por todo o mundo, têm mostrado faltas graves na sua actividade é extensa e parece estar sempre a crescer, tendo-se-lhe juntado agora o Bank of America que aceitou pagar 16,65 mil milhões de dólares em multas e indemnizações a clientes a quem vendeu produtos financeiros tóxicos. Nomes sonantes da banca internacional como o JPMorgan Chase, o Citigroup, o HSBC ou o Barklays têm andado nas bocas do mundo e nas barras dos tribunais por passarem reiteradamente e de forma grave a fronteira da ilegalidade e, acima de tudo, da decência. E não se pense que tudo isto surge de falta de regulação ou de fiscalização, porque tem mesmo muito a ver com atitudes deliberadas dos seus responsáveis ao mais alto nível, recordando-se aqui a fuga do CEO do Anglo Irish Bank da Irlanda para os Estados Unidos onde abriu falência, para não pagar os 8,5 milhões de euros que ele próprio devia ao banco.
Na segunda metade do século XX e no actual surgiram rápidas e profundas alterações em toda a organização financeira que acompanharam as profundas mudanças económicas relacionadas com a globalização e a facilidade de deslocação de pessoas e bens. 

As transacções financeiras aproveitaram os meios tecnológicos à disposição e passaram a fazer-se a uma escala verdadeiramente planetária a uma velocidade antes impensável. A banca comercial tradicional foi invadida pela banca de investimento que inundou a economia de produtos financeiros “derivados” que a partir de certa altura ninguém sabia bem a que correspondiam na realidade. Os próprios instrumentos de segurança contra as flutuações de taxas de juro tornaram-se verdadeiro fogo nas mãos de quem os subscreveu. As autoridades que superintendem na actividade financeira ficaram manietadas e perdidas no novo contexto, perante a dificuldade política de rever adequadamente e em tempo útil todo o edifício legislativo que define as regras da finança.
Em Portugal não fugimos à regra. Quando a crise de 2008 nos bateu à porta, vivíamos num mundo fantasista que pressupunha todo um contexto que já havia desaparecido há anos. Com as melhores intenções e a maior incompetência atirámos com dinheiro para cima dos problemas, dinheiro esse de empréstimo externo, criando investimento para “puxar” pelo consumo interno, à boa maneira keynesiana. Isto, quando não tínhamos moeda própria para poder imprimir notas nem para mexer no câmbio. Secando o financiamento à economia, os bancos viram-se reduzidos ao papel de obter financiamento junto do Banco Central Europeu para o colocar em papel de dívida pública, já que o Governo estava impedido de o fazer, pelas regras comunitárias.
Com tudo isto a banca portuguesa também não passou incólume pela crise. Por diversas razões, diversos bancos nacionais expuseram as suas fraquezas aos olhos de toda a gente, com consequências diferentes. Foram os casos do BPN, BPP e mesmo do BCP.

Entretanto a União Europeia desenvolveu um novo modelo para actuar nos bancos quando algum deles vai à falência com riscos para a economia. Portugal transpôs essa norma para o direito interno e esse modelo foi aplicado agora ao BES. Através do “Fundo de Resolução” em que todos participam, o conjunto de bancos portugueses foi chamado a intervir num novo banco criado para o efeito que ficou com a parte “boa” do antigo BES e que deverá ser vendido o mais rapidamente possível. Como este Fundo é recente e ainda não dispunha de capacidade financeira suficiente, o Estado fez-lhe um empréstimo de dinheiro ainda remanescente da Troika. 

Como resultado, se o novo banco for vendido por um valor acima do dinheiro lá metido, o empréstimo é devolvido e os resultados divididos pelos bancos através do Fundo de Resolução; caso contrário, são os próprios bancos que assumem o prejuízo na devolução do empréstimo, na parte que lhes corresponder. Isto é, neste momento, são os bancos que estão interessados no sucesso da operação, evitando mesmo acções concorrenciais que possam baixar o valor do novo banco que agora é deles próprios.
Como se vê, não se trata de uma nacionalização e sim de um processo que mete todos os intervenientes numa embarcação a remar para o mesmo lado, sob o risco de todos perderem.
Como resultado final, o banco será vendido a estrangeiros, mas neste momento já é mais ou menos isso que se passa com toda a banca privada portuguesa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Agosto de 2014

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

ESTADO ISLÂMICO: OS DOIS INIMIGOS SISTÉMICOS



Após ter tomado controlo de uma parte de território sírio e iraquiano incluindo Mossul a segunda maior cidade deste ultimo país, Abu Bakr al Bagdadi decidiu deixar cair o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante – EIIL)”, declarando estar fundado o “Estado Islâmico” (EI), o novo califado de que ele próprio se nomeou califa. O “EI” pretende reconstituir o califado Omíada que terminou em 750, e que se estendia desde a Península Ibérica até à Ásia onde hoje se situam o Paquistão e o Afeganistão.
Califado significa forma islâmica de Governo que segue à risca a teologia islâmica, sendo portanto um puro estado teocrático. Para o EI, quem não seguir fielmente as orientações definidas pela Sharia é considerado inimigo. Como tal, membros de minorias religiosas são colocados perante três hipóteses: converter-se ao islã sunita, pagar um imposto ou ser executado. Nestas minorias contam-se os cristãos, mas também yasidis e mesmo xiitas. Nem os próprios sunitas estão livres de perseguição, se a sua moderação não os levar a colaborar completamente com o EI, como se comprova pela chacina pelos jihadistas de 13 clérigos sunitas moderados em Junho passado. Uma das formas de impressionar e atemorizar quem não apoia completamente o EI é filmar as chacinas e coloca-las na internet; outra forma é cortar as cabeças dos mortos e coloca-las aos pés dos próprios assassinos jihadistas que as mostram com orgulho. Chegou-se ao grotesco de um combatente jihadista nascido na Austrália ter colocado uma cabeça humana nas mãos do filho de 8 anos e ter publicado a foto na net com o comentário “este é o meu rapaz”.
O chamado Estado Islâmico ocupa actualmente parte da Síria e boa parte do Iraque. 

No norte deste país, na região de Ninive, perseguiu violentamente os Yasidis que seguem um culto religioso anterior ao islamismo. Depois de chacinas em que os militantes do EI mataram pelo menos 500 Yasidis, enterrando boa parte deles ainda vivos incluindo bebés e levando centenas de mulheres como escravas, dezenas de milhares de Yasidis fugiram para a montanha vizinha, ficando expostos à fome e à inclemência do tempo, cercados pelos islamitas sem ter para onde fugir mais. Foi esta a razão dos bombardeamentos aéreos americanos e ingleses da semana passada que abriram corredores de fuga, com a ajuda dos curdos, permitindo o resgate de boa parte dos fugitivos.

O EI elegeu como inimigo todo aquele que não concordar com a teologia islâmica tal como eles a vêem, o que quer dizer, basicamente todo o resto do mundo, incluindo o desenvolvimento civilizacional que nos trouxe até ao que somos hoje. É o seu primeiro inimigo sistémico, que se pode considerar exterior.
Mas, como se não fosse suficiente, o “EI” definiu ainda um segundo inimigo sistémico, desta vez interior, mesmo dentro das suas próprias casas.
Nas fotografias que se recebem diariamente do chamado Estado Islâmico há algo que ressalta à evidência. Só se vêm homens, a cavalo ou em jipes ou furgões, armados até aos dentes. Também nas reportagens de chacinas, só se vêm homens a matar, nunca mulheres. Estas aparecem de fugida, ao fundo das imagens, escondidas dos pés à cabeça. Ou então em filmes de castigos contra as mulheres “pecadoras” provavelmente apenas por saírem à rua com a cara descoberta, semi enterradas e a serem lapidadas até à morte no meio de grande algazarra feita por homens, apenas homens. O novo “Estado Islâmico transformou a mulher num ser inferior, sem qualquer papel social, para além de servir os jihadistas. E não será por acaso que assim acontece. Na realidade, nenhum de nós imaginaria uma mãe a regozijar-se por ver um filho seu como o jihadista australiano o fez, ou mulheres a fazerem-se fotografar com uma série de cabeças humanas decapitadas aos pés.
Não, estimado leitor, não estou a delirar nem a descrever situações de há mil anos ou mais. Isto está neste mesmo momento a passar-se naquele que foi o berço da civilização. Este delírio destrutivo colectivo deverá estar condenado a desaparecer sem reconstruir o velho califado, mas também sem que as consequências para milhares de pessoas possam ser reparadas. E, tal como se devem condenar actos passados há centenas de anos como as cruzadas ou a inquisição, ou mais recentemente o holocausto, por maioria de razão a nossa voz não deve calar-se perante a barbárie nos nossos dias.

 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Agosto de 2014

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

PERPLEXIDADE


O actual ministro da Economia reagiu ao sucedido no BES e na PT, manifestando publicamente uma enorme perplexidade traduzida na exclamação: estas situações "são completamente atípicas e, acima de tudo, inexplicáveis".
De facto, para alguma quase-elite portuguesa deslumbrada, o que se tem passado nos últimos anos é inexplicável e, acima de tudo, motivo uma enorme perplexidade. Já para o português comum, infelizmente não é nada surpreendente, vindo na esteira do que se tem passado no nosso país há séculos.
Portugal teve um período histórico de grande notoriedade quando, muito por acção de uma mulher inglesa que veio casar com um rei nosso e que educou os seus filhos de uma forma diferente do habitual entre nós criando a chamada “ínclita geração”, se virou para o único lado que podia para crescer e deu origem aos descobrimentos marítimos. Após essas dezenas de anos ainda teve alguma importância internacional, mas afundou-se numa exploração miserável de escravos e das riquezas ultramarinas, sobretudo do Brasil. Até chegar ao início do século XIX em que o rei e toda a corte fugiram para o Brasil perante a invasão francesa, abandonando o povo à sua sorte, isto é, à completa destruição e roubo de tudo o que tinha algum valor e à morte de milhares de portugueses e miséria absoluta dos sobreviventes. Após o que seguiu uma guerra civil entre facções de dois irmãos, cada um pior que o outro em todos os aspectos, deixando o país ainda pior do que estava, se é que tal era possível. 
Vinda a paz, continuou a degradação do regime, até ao Ultimato Inglês e à bancarrota que só acabámos de pagar poucos anos antes do século XXI. À Monarquia em que no fim o próprio rei se queixava de ser rei de uma república, seguiu-se a Primeira República que, de tal confusão que foi, deu logo origem a uma ditadura militar que, por sua vez, vendo-se incapaz de governar, tratou de chamar um catedrático de finanças de Coimbra para o fazer. E Salazar governou como sabia e como quis: em ditadura, sem partidos políticos e portanto sem eleições, cuidando de todos os aspectos da vida do país como se fosse a sua própria casa. Desaparecido Salazar, o seu sucessor Marcelo Caetano enredou-se nas suas indecisões ficando apenas o tempo necessário para ver o regime cair sem ninguém para o defender.
Vinda a Democracia com o 25 de Abril, e após os tempos habituais de confusão que normalmente se seguem aos golpes de estado, rapidamente entrámos em falência por duas vezes com a chamada do FMI para nos valer. Após o que Mário Soares, olhando à sua volta, terá concluido que com aquela gente que via a nossa economia não tinha hipóteses de crescer a sério. E tratou de chamar os antigos que se tinham ido embora. Voltaram assim Espíritos Santo, Mellos, Champalimaud e até Jardim Gonçalves ainda bancário, mas convidado a fazer um Banco privado a sério. Cuidava Mário Soares que assim restauraria a elite económica do país e o recolocaria nos índices de crescimento dos fins dos anos sessenta, inícios de setenta. 
Depois de centenas de milhares de milhões de euros vindos da EU, acabámos novamente por ir à falência e vemos agora esfumar-se à nossa frente um dos principais grupos económicos, com um ministro da Economia a olhar espantado sem perceber nada do que vê e a dizê-lo publicamente.
O que há de comum em toda esta História?: não um povo incapaz ou calaceiro que, quando vai para fora, produz mais e melhor que muitos outros O que há de comum, em permanência secular, é a não existência de elites capazes e empreendedoras. Se, desde os descobrimentos até ao fim do século XIX, a elite nacional era constituída por uma aristocracia caduca e ridícula nas suas preocupações de manifestação de importância, quer fosse ultramontana ou liberal, no século XX viveu quase sempre à sombra do poder político e dele dependeu. Mário Soares, na sua santa ingenuidade, acreditou que com as antigas elites reconstruiria o país. Infelizmente enganou-se. Vemos hoje como boa parte dessas supostas elites não é capaz de trabalhar e produzir em regime liberal e aberto de sã concorrência, preferindo conúbios mais ou menos secretos com o Estado e negociatas com fugas às responsabilidades fiscais que todos os cidadãos partilham.
Não precisamos de elites pseudo aristocráticas com falso brilho e podres por dentro. O que Portugal precisa é de elites económicas e empresárias capazes de criar um lastro estabilizador que permita uma navegação do país rumo ao crescimento e desenvolvimento, independentemente de políticos e das navegações à vista.