segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Hora de recordar Voltaire



Quando um cronista vai estabelecendo o seu plano de textos, o próximo vai surgindo e desenvolvendo-se na sua mente logo após a publicação do anterior que, depois de aparecer na página do jornal, lhe foge e rapidamente se torna em algo estranho ao próprio autor. No entanto, por vezes sucede que a realidade do quotidiano surge com tal força que se impõe, não deixando espaço para as ideias anteriores.
A carnificina da passada quarta-feira na redacção do jornal satírico Charlie Hebdo e desenvolvimentos posteriores que incluíram a morte de clientes num supermercado em Paris e só terminaram com a morte dos assassinos confessos, é um assunto que grita tão alto que ninguém pode ficar indiferente ou passar ao lado.
O extremismo islâmico não se contenta com as decapitações de jornalistas que fazem o seu trabalho onde as coisas acontecem, como é o caso do chamado “estado islâmico”, e vem agora trazer a morte ao interior das redacções dos próprios jornais, ainda que em locais longínquos como Paris. Falo no presente e não no passado, porque nada garante que esta acção seja isolada, antes pelo contrário, como responsáveis da al Qaeda se apressaram a avisar e ameaçar.
Terroristas lhes chamaram todas as pessoas que se referiram aos atentados. E bem, porque se trata na realidade de tentar levar o terror e infundir o medo a todos os cidadãos do mundo livre, fazendo-lhes sentir que não estão seguros em lado nenhum nem em qualquer momento. Incluindo os muçulmanos que vivem nesse mundo e que, na realidade, fugiram desse outro mundo que os extremistas pretendem levar a todo o lado. Dizem agir em nome de Alá, o seu Deus e falam de guerra santa contra os infiéis, que são todos os que não seguem Alá como eles acham que deve ser seguido. O que se passa na Síria, no Iraque, na Nigéria e no Iémen não pode ser esquecido nem escondido. A barbárie terrorista praticada pelos extremistas islâmicos exercida contra todos mas na sua maioria contra muçulmanos pacíficos e indefesos, tem que ser encarada e combatida com urgência. Assistimos a mais uma guerra religiosa levada a cabo por fanáticos que desvirtuam a sua própria crença como, infelizmente, se tem visto ao longo da História da Humanidade, com consequências sempre trágicas. Têm que ser tratados como puros terroristas e não como representantes de uma religião ou de uma civilização diferente das nossas.
O semanário “Charlie Hebdo” é um jornal satírico, praticando uma crítica social mordaz que segue uma tradição de séculos nos países ocidentais. Muitas vezes criticou situações ligadas às religiões, à sociedade e aos nossos modos de vida, frequentemente de forma ácida e corrosiva, que desagradava a muita gente. Estava no pleno direito de o fazer. Se alguém se sentisse injustamente atingido, poderia recorrer aos tribunais, como é normal em sociedades civilizadas, o que aliás sucedeu por várias vezes. O ataque de que foi vítima vem na sequência da tentativa de censura que atacou também Salman Rushdie e tantos outros autores anteriormente. No fundo, mais uma vez a luta das trevas a quererem tapar a luz da Liberdade.
Desta vez o ataque foi em Paris, o que traz uma enorme carga simbólica. No Panteão de Paris repousam os restos mortais de Voltaire, o grande iluminista e lutador pela Liberdade que introduziu em França a tolerância religiosa e a liberdade de imprensa. Dele foi dito que a melhor maneira de definir o seu espírito seria: "Posso não concordar com nenhuma palavra do que você disse, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Voltaire morreu há cerca de 250 anos. É verdadeiramente trágico que, ainda hoje, seja necessário lembrar o seu espírito, devido a carnificinas de homens e mulheres levadas a cabo em solo de Paris, motivadas por ataques à liberdade de expressão e de imprensa.
Pelo que todos temos observado, o resultado imediato destes actos brutais de terrorismo tem sido uma enorme onda de solidariedade francesa e internacional para reafirmação da liberdade de expressão. Espera-se que esse espírito se mantenha e se reforce, criando barreiras ao medo que, insidiosamente, tende a instalar-se perante a violência, preparando terreno para a falta de Liberdade.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Janeiro de 2014

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

O Pólo Norte da discussão



Quer tal seja ou não verdadeiro, a História refere Robert Peary como tendo sido o primeiro explorador a atingir o pólo Norte. Tal aconteceu em 1909 há, portanto, cerca de apenas cem anos. Tal reflecte a inacessibilidade da zona, coberta de gelo e cuja temperatura média anual é de trinta graus negativos. Durante muito tempo o interesse no Pólo Norte foi mais curioso ou académico que outra coisa e mesmo o tráfego marítimo na zona era obrigado a dar uma volta larga, só sendo possível durante os meses de degelo do Verão. Os interesses soberanos sobre aquele território eram por estas razões, diminutos, mesmo tendo em conta o conhecimento da existência de grandes recursos naturais, designadamente minerais.
Nos últimos anos, em parte por uma diminuição dos gelos da calote polar, esta situação alterou-se radicalmente. Tal deve-se igualmente à descoberta de que no Pólo Norte estará 1/8 do petróleo mundial ainda não explorado, bem como um quarto das reservas de gás.

Foi assim que a Rússia deu um primeiro passo em 2007, colocando uma bandeira russa feita de titânio no ponto exacto do Pólo Norte, tendo sido declarado que aquele pólo foi sempre russo. No passado mês de Dezembro coube à Dinamarca reclamar uma grande área junto ao Pólo Norte, fazendo uso de uma regra do Direito Marítimo segundo a qual um país pode reclamar controlo de uma área oceânica para além das duzentas milhas marítimas, se ela for considerada uma extensão da sua plataforma continental; de facto, a famosa cordilheira Lomonosov começa na Groenlândia que pertence à Dinamarca e atravessa todo o Ártico, o que sustenta a posição dinamarquesa. O Canadá é vizinho e reclama igualmente uma parte do Ártico, o mesmo sucedendo com os EUA, dado que o Alasca é um Estado americano; a Noruega tem o seu arquipélago Svalbard no Ártico, sendo mesmo o ponto da Terra permanentemente habitado mais próximo do Pólo Norte, pelo que reclama igualmente o seu quinhão no ártico.
Até agora, toda esta discussão internacional tem decorrido na observância estrita da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) tratado internacional celebrado em 1982, que regula a utilização internacional de conceitos como “mar territorial” e “plataforma continental”, entre outros, definindo regras para a exploração dos recursos naturais marítimos. Devemos ter consciência de que a CNUDM é muito importante para nós portugueses, dado que a aplicação das suas regras atribui ao nosso país um mar territorial de excepcional dimensão a nível europeu. Neste momento discute-se mesmo, no âmbito da CNUDM, a fronteira do mar territorial português, dado que a Espanha requereu uma alteração da actual situação, com o argumento de que as Desertas são rochedos e não ilhas, como sempre foi considerado por Portugal. Não é a primeira vez que a Espanha faz esta tentativa, embora anteriormente o tivesse feito de forma, digamos, mais subterrânea, e façamos votos de que mais uma vez esteja votada ao fracasso, através dos esforços e competência dos nossos diplomatas.
O Ártico tem um valor enorme para todo o mundo, mas essencialmente para os países limítrofes. Existe mesmo um fórum específico de negociações que é o “Conselho Ártico” que, até agora, tem sido um exemplo na abordagem de toda a discussão destes assuntos. O Pólo Norte tem uma grande carga simbólica, dado que serve de ponto de orientação às movimentações terrestres, tendo mesmo sido dado o nome de Estrela Polar à estrela que há alguns milhares de anos está mais próxima dele nos céus do hemisfério norte. Esperemos que o seu símbolo de orientação continue a funcionar mesmo nesta discussão actual sobre os seus valiosos recursos naturais, designadamente os energéticos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 5 de Janeiro de 2014

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O TEMPO E O HOMEM



O leitor sabe o que é o tempo? O escriba destas linhas, embora tenha lido “Uma breve história do tempo” de Stephen Hawking ou se calhar por causa disso mesmo, reconhece que não sabe o que é o tempo, na realidade.
Desde o início dos tempos, o Homem necessita de se orientar durante a sua vida e no dia a dia. É assim que a rotação da Terra lhe dá um meio de distribuir a sua acção no curto prazo: dormir, trabalhar, alimentar-se, relacionar-se com os semelhantes. A duração do dia dividida comodamente em 24 horas não corresponde senão a uma rotação inteira da Terra sobre si própria, a uma velocidade de mais de 1.600 km/hora. Mas a Terra não roda só sobre si própria. Ela viaja permanentemente pelo espaço, à volta do Sol, à velocidade estonteante de 107.000 quilómetros/hora, oferecendo-nos o conceito de ano, dos meses e estações do ano tão propícias a organizar a vida agrícola. E, nestes seus movimentos, a Terra transporta-nos a todos na sua superfície, com o conforto e segurança que a sua atmosfera nos proporciona. Sem disso ter consciência, imaginando estar parado no centro do universo, o Homem utilizou esses movimentos para desenvolver o conceito de tempo, que é falso, mas nos facilita a vida, ao dar-nos medidas para períodos de tempo bem definidos, com segurança.
E, assim, enquanto na realidade um ano de vida significa que fizemos uma translacção inteira à volta do Sol, isto é, um percurso de mais de 940 milhõesde quilómetros, para nós, mais prosaicamente, significa apenas um conjunto de 365 dias.

A convenção da mudança de ano dá-nos ainda a oportunidade de, se não fazer uma avaliação do que se passou, pelo menos fazer o balanço dos factos que mais marcaram o ano findo.
O ano de 2014 do calendário gregoriano seguido por quase todos os países do mundo que agora termina, foi particularmente marcante em termos internacionais, mas também em particular para nós portugueses.
Em termos internacionais, a barbaridade islamita no chamado “estado islâmico” na Síria e Iraque, no Paquistão e na Nigéria sobrepõe-se a tudo, pela violência indescritível. Ao menos, houve coragem para dar o prémio Nobel à jovem Malala, o que não redime o mundo daquilo que é permitido fazer aos extremistas religiosos, neste caso os islamitas. Mas a anexação ilegal da Crimeia por Putin e o abate de um avião civil sobre aquele país deixam tristes recordações e grandes preocupações pelo futuro naquela zona da Europa. A acção do Papa Francisco, quer na renovação doutrinária que tenta levar a cabo, quer pelos esforços pela paz como aconteceu no reatar de relações entre Cuba e os EUA é de saudar. Como é de realçar o facto de aqui ao lado, em Espanha, ser possível que a Justiça leve a julgamento uma princesa, irmã do próprio Rei Filipe.
Entre nós, realce para o fim “limpo” do programa de três anos da troika que nos trouxe austeridade e sacrifícios. Mas, talvez sinais de uma mudança profunda no país, os casos de justiça que têm a ver com o relacionamento da política com a economia, começaram a sair em força dos armários.

 O BES desapareceu e com ele a influência de Ricardo Salgado e do grupo da família Espírito Santo na finança, na economia e mesmo na política. A sua prisão, com libertação caucionada ao pagamento de 3 milhões de euros, abriu a caixa de Pandora de onde começaram a sair coisas nunca antes vistas em Portugal. É o caso da prisão do anterior primeiro-ministro José Sócrates com indícios de corrupção entre outros crimes. Mas não podemos esquecer as condenações judiciais de políticos proeminentes como Maria de Lurdes Rodrigues, Armando Vara e Duarte Lima, neste caso a dez anos de cadeia. Agentes superiores do Estado foram igualmente presos por suspeitas de corrupção, como o Director Nacional do SEF Manuel Palos e o presidente do Instituto de Registos e Notariado, António Figueiredo. A Portugal Telecom está a ter o destino que se previa há muito pela promiscuidade entre política e negócios, desde que vendeu a Vivo num negócio que deverá dar muito que falar em 2015 e foi obrigada a adquirir participação nessa empresa problema brasileira que se chama OI.
Dá a sensação de que o mundo acelerou neste ano de 2014, mas ainda não se sabe bem para onde havendo, no entanto, sinais de esperança, embora acompanhados de muita preocupação.
No fim de 2014, faço votos de que cada um dos meus leitores e leitoras tenha um ano de 2015 que seja melhor do que este de que agora nos despedimos e que possam melhorar um pouco as condições que o mundo vai oferecer aos nossos filhos e netos, os que cá estão e os que chegarão.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 Dezembro 2014

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Guerra e Paz


Passam agora setenta anos sobre um dos factos mais importantes da Segunda Guerra Mundial, que tem sido motivo de celebrações em diversos locais da Bélgica Holanda e França. Após o desembarque na Normandia em 6 de Junho de 1944, as tropas aliadas avançaram irresistivelmente a caminho da Alemanha, visando a derrota final de Hitler e do seu “império dos mil anos”. Em Dezembro desse ano, Hitler organizou e comandou pessoalmente aquilo que no seu delírio supôs ser a batalha que derrotaria finalmente os aliados. Os alemães juntaram diversos exércitos num total de cerca de 250.000 homens com equipamento militar poderosíssimo incluindo dois exércitos de panzers e organizaram um contra-ataque fulminante de surpresa através das Ardenas, com vista a ocupar o porto de Antuérpia e quebrar os fornecimentos aliados. Foi uma das batalhas mais terríveis do teatro de batalha europeuna segunda Grande Guerra, não só pelas baixas que provocou, mas também pela ferocidade de que se revestiu. Fundamentalmente, foram os exércitos americanos que fizeram frente às terrível ofensiva alemã. Diversos factores contribuiram para as dificuldades com que se defrontaram as tropas aliadas na ofensiva das Ardenas. As nuvens e nevoeiro persistente anularam a vantagem aérea dos aliados. A ofensiva alemã apanhou os aliados de surpresa, não só porque conseguiram manter em segredo a sua preparação, mas também porque foram enviadas largas dezenas de alemães vestidos com fardas americanas para trás das linhas da frente aliadas, que confundiram os altos comandos com informações falsas. Com neve e frio intenso que só por si causaram milhares de baixas, os soldados americanos foram cercados e derrotados em diversos locais da floresta das Ardenas.

 No entanto, num local crucial para a passagem do grosso dos exércitos alemães para Antuérpia, um punhado de soldados americanos do regimento 101º de Aerotransportados resistiu heroicamente durante vários dias às ofensivas alemãs, até à chegada salvadora do 4º Exército americano. Ficou para a História a resposta do Gen. McAuliffe aos emissários alemães que lhe vieram propor a rendição e que se traduziu numa única palavra: “Nuts”. Valeu às tropas americanas, ao fim de seis dias de combates mortíferos, o levantar do nevoeiro que possibilitou a entrada em acção das forças aéreas inglesa e americana, o que virou a sorte da batalha. Esta ofensiva alemã ficou ainda famosa por diversos motivos, para além da sua violência. Na véspera do natal de 1944, os alemães fizeram o primeiro ataque aéreo ao solo utilizando aviões a jato em vez dos aviões a hélice utilizados até então. O exército alemão não seria derrotado sem que procedesse a um dos piores crimes de guerra que se conhecem, o Massacre de Malmédy perpetrado em 17 de Dezembro de 1944, em que largas dezenas de soldados americanos prisioneiros de guerra foram chacinados com fogo de tanques alemães Panzer.
A vitória aliada foi obtida à custa de sacrifícios inimagináveis dos soldados americanos, ingleses, canadianos e franceses envolvidos na batalha. Winston Churchill viria a considerar esta batalha como a mais importante de toda a Segunda Grande Guerra e que seria certamente a mais famosa vitória americana de sempre. No fim da batalha, em 28 de Janeiro de 1945, mais de 20.000 soldados americanos tinham morrido e dezenas de milhares ficado feridos com gravidade, desaparecido ou sido capturados, tendo morrido cerca de mil soldados ingleses. Do lado alemão, as estimativas apontam para mais de 70.000 baixas.
É costume dizer-se e eu concordo, que todas as guerras são injustas. Quem sofre mais nas guerras são soldados que apenas cumprem ordens e servem muitas vezes de carne para canhão, além de civis que são esmagados no caminho das armas. Mas, apesar de injustas, há guerras que são necessárias. Infelizmente. Se hoje celebramos o Natal em Paz, é porque muitos se sacrificaram e deramaprópria vida para que isso fosse possível, mesmo em épocas de Natal não tão distantes no tempo quanto isso e não devemos esquecer isso nunca.
A quem me lê, desejo um Bom Natal em Paz.