segunda-feira, 23 de setembro de 2019

CAMPANHA MORNA E ESQUECIDA


Acabada a fase de pré-campanha que, como disse o Presidente da República, durou mais de um ano, entramos agora na fase da campanha eleitoral propriamente dita. É aquela em que os candidatos a deputados visitam feiras e centros de dia, mostrando-se e distribuindo sorrisos e simpatia tentando assim obter mais algum voto que ainda esteja disponível para pescar. Na realidade, as escolhas de cada um dos cidadãos votantes estarão já feitas na sua esmagadora maioria, incluindo aqueles que engrossam o tristemente grande pelotão dos abstencionistas.
A pré-campanha caracterizou-se por duas características principais. A primeira por ter sido morna, com uma algo estranha atitude quase conciliatória entre os diversos actores que se encontraram nos debates, com a excepção notória do divórcio político entre o PS e o BE. Depois, três aspectos cruciais nas profundidades da política nacional, por motivos vários e diferentes para cada um dos protagonistas, são deliberadamente calados ou mesmo escondidos ao povo português, assim generalizadamente mantido numa ignorância que, no mínimo, se pode considerar oportunista.
Em primeiro lugar, continua a narrativa sobre o governo anterior que “veio com a troika”, mãe de todas as desgraças. Ainda por cima, esse governo, certamente por gosto de maldade, foi ainda além da troika. Omite-se que o governo foi escolhido pelo povo português depois de o governo socialista ter chamado a troika e com ela ter acertado um plano de resgate financeiro. O que é ocultado aos portugueses é que a própria troika, ao chegar e verificar a realidade das contas do Estado, encontrou “buracos” escondidos que ascendiam a cerca de trinta mil milhões de euros, atirados pelo anterior governo para debaixo do tapete de empresas públicas e dívidas ocultas. Perante a emergência, o governo de então tinha dois caminhos: ou renegociava com a troika mais um empréstimo a adicionar aos 78 mil milhões do plano de resgate, o que significaria uma hecatombe dado o estado de emergência, ou encontrava maneira de resolver internamente mais esse problema. O que foi feito, com o tal “brutal aumento de impostos”. Apesar disso, o país começou a recuperar e logo no fim de 2013 recomeçou a crescer e em 2014 o desemprego começou a diminuir. O conhecimento destes factos tem importância política, por desfazer mitos sempre prejudiciais.

O segundo aspecto que permanece escondido aos portugueses é a existência do chamado Pacto Orçamental. Na realidade, desde 2013 que os orçamentos nacionais têm que ir à Comissão Europeia antes de entrarem em vigor. O primeiro Orçamento do actual governo, no início de 2016, voltou para trás e foi radicalmente alterado para ser conforme às regras orçamentais europeias. Começou aí o controlo do défice que agora é assumido como um êxito e, nesse aspecto, ainda bem. Só que o método para lá chegar, esse já não interessa à Comissão Europeia para quem, com uma grande dose de cinismo, só interessa aquele número final. Os graves problemas decorrentes da falta de investimento público e da própria manutenção de equipamentos cruciais e infra-estruturas são do foro nacional e os srs. Comissários não têm nada a ver com isso. Tal como não se preocupam com listas de espera para cirurgias ou consultas, nem com escolas sem pessoal auxiliar, nem com tribunais com a chuva a entrar pelo telhado.
O terceiro aspecto é o sucesso dos juros baixos da nossa dívida pública que, em
determinados prazos, chegam a ser negativos. Omite-se que tal facto se deve unicamente à acção do BCE que, com os chamados “estímulos à economia”, baixa os juros e mantém-nos artificialmente perto de zero. Esta acção prolongada no tempo, mantendo-se a nossa dívida num patamar de 120% em conjunto com um crescimento anémico da economia, traduz-se numa ficção perigosa a que urge fugir. O que está a acontecer é que a riqueza portuguesa está a cair paulatinamente a caminho do último lugar europeu, a produtividade diminui e o ordenado médio dos portugueses aproxima-se cada vez mais do ordenado mínimo nacional.
A manutenção da ignorância acerca de matérias com esta importância para a nossa vida colectiva como país integrante de uma União, com grande probabilidade irá criar as condições para o desenvolvimento de populismos e extremismos que, como é sabido, radicam sempre na ignorância e no desconhecimento da realidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Setembro de 2019

Celebremos o Outono

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

CAXEMIRA


Caxemira (ou pashmina) não é apenas o nome de uma lã que aquece, embora seja muito leve e confortável. E muito cara, também. Curiosamente, essa lã vem, não da região de Caxemira no subcontinente indiano, mas de ovelhas que vivem nos Himalaias, no Nepal, na Mongólia e na China e que desenvolveram um pêlo que as protege das temperaturas baixíssimas das montanhas. Historicamente essas lãs, de uma qualidade extraordinária, eram posteriormente tratadas pelos tecelões de Caxemira, seguindo depois para a Europa.
O vale de Caxemira, com 7 milhões de habitantes, é a jóia do Estado da Caxemira que ficou dividido entre a Índia e o Paquistão, após a saída dos britânicos em 1947. O Vale ficou integrado na zona indiana, apesar de a sua população ser maioritariamente muçulmana e não hindu. Pela sua localização entre as montanhas do Caracórum, do Pir Panjal e a cordilheira do Zanskar, o Vale de Caxemira goza de um clima ameno que contrasta com o território que o rodeia. É de uma grande beleza natural, atraindo turistas de todo o mundo claro, quando não está em estado de guerra ou pré-guerra, como acontece nos dias de hoje.
Como tantas vezes sucedeu após a queda dos impérios coloniais, aqueles novos países tiveram as suas fronteiras traçadas a régua e esquadro, cortando antigas comunidades, com o problema suplementar de o Paquistão ter ficado dividido em duas parcelas separadas por mais de 2.000 km, a oriente e a ocidente da península, com a Índia no meio. Não foi preciso esperar muito para que a Índia e o Paquistão tivessem conflitos fronteiriços.

Embora tivessem partido de uma base comum, o império britânico, a Índia e o Paquistão vieram a desenvolver sistemas políticos muito diferentes. A Índia, com excepção de um breve período, evoluiu para uma democracia que, embora vista do exterior possa parecer um pouco confusa devido fundamentalmente à estratificação social, tem sido relativamente estável. A maior democracia do mundo, como por vezes é chamada conseguiu, fundamentalmente, submeter as suas forças armadas ao poder civil. Já o Paquistão evoluiu de forma inteiramente diferente. Devido à proximidade do Afeganistão, as forças armadas anteriores à independência ficaram, em grande parte, localizadas no Paquistão ocidental. Não demorou muito até os generais paquistaneses tomarem conta do poder, o que aconteceu em 1958, e iniciarem ataques de guerrilha em Caxemira logo em 1965, iniciando uma guerra que durou algumas semanas até se conseguir a paz. E, em 1971, foi a vez de os indianos apoiarem os independentistas da zona oriental do Paquistão, a que se seguiu uma repressão brutal pelos exércitos paquistaneses. A violenta guerra que se seguiu ditou a independência do Bangladesh, após o exército indiano ter derrotado os paquistaneses e terem morrido mais de meio milhão de civis do Bangladesh. Depois desta debacle militar, o General Zia ul-Haq dirigiu em 1977 um golpe de estado que recolocou os militares no poder com o apoio dos americanos e da Arábia Saudita, coincidindo com a invasão soviética do Afeganistão. O Gen. Zia morreu num acidente de avião em 1988, ano de saída da URSS do Afeganistão. O poder é hoje formalmente civil, mas os militares têm ainda um poder enorme.
O Paquistão nunca deixou de considerar que a Caxemira lhe foi retirada aquando da independência. Os seus habitantes sentem também que não pertencem à Índia, embora as suas condições de vida sejam bem melhores do que as dos paquistaneses, em geral. Face a este sentimento, o governo indiano retirou, há poucas semanas, a autonomia a Caxemira, para evitar manifestações. Em consequência as forças policiais indianas prenderam milhares de pessoas nos últimos dias na zona indiana de Caxemira, enquanto o Paquistão acusa o lado indiano de ter morto vários paquistaneses, o que é negado pela Índia.
Quer a Índia, quer o Paquistão, são potências nucleares possuindo ainda mísseis modernos que permitiriam ataques às principais cidades de ambos os países em poucos minutos. O actual primeiro-Ministro indiano tem levado o seu país a entrar por caminhos nacionalistas e mais autoritários. A sua actuação recente em Caxemira não augura um futuro pacífico para aquela região, sendo necessário e urgente que as Nações Unidas tenham um papel rápido e eficaz que evite o pior.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 Setembro 2019

Vera Lynn - We'll Meet Again

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

IP3 - Estrada da vergonha


Há poucos dias, enquanto circulava no IP3 perto de Chamadouro na zona da barragem da Aguieira, deparei-me com um acidente, mais um a juntar ao triste historial daquela estrada. Um pesado de mercadorias tinha entrado em despiste, invadindo a via contrária e esmagando um veículo ligeiro de mercadorias que seguia em sentido contrário. Assim se ceifou a vida do condutor do ligeiro de mercadorias. Já estamos tão habituados a este tipo de ocorrências, que as vítimas são tratadas como mera estatística perdendo mesmo a sua identidade. Como isto não deveria suceder nunca, de alguma maneira retiro do anonimato a vítima mortal deste acidente. Tratava-se de um jovem de 22 anos de idade, natural de Silvares no concelho do Fundão, terra que por acaso conheço bem fazendo parte das minhas memórias de sempre. Circulava naquele local e naquela viatura porque, estando a terminar os estudos superiores, tinha aproveitado as férias para trabalhar e era o que fazia quando perdeu a vida.
Infelizmente, este acidente não constitui uma raridade nas estradas portuguesas, nem sequer naquela estrada em concreto.
Durante muito tempo, Portugal deteve um triste recorde sistemático de sinistralidade e mortalidade rodoviárias. Mercê de diversos factores, como melhoria das estradas, renovação dos veículos, campanhas de sensibilização e também de policiamento, essa situação alterou-se e, de forma contínua, as estatísticas portuguesas de sinistralidade rodoviária foram sendo reduzidas para níveis mais próximos das médias europeias. Contudo algo de grave parece estar a suceder. Desde 2017 que a descida das estatísticas se inverteu, aumentando o número de acidentes e de mortos. Em 2018, o número total de vítimas mortais - 675, foi mesmo o mais elevado desde 2012. No corrente ano, só até 21 de Agosto, já morreram 296 pessoas e as notícias dos últimos dias têm sido trágicas, fazendo prever que o número de mortos possa ser ainda superior ao de 2018. Convém lembrar que a média portuguesa de mortos nas estradas é de 69 pessoas por milhão de habitantes, o que ainda nos deixa muito longe do valor médio equivalente europeu que é de 49. Por aqui se vê que, para além da gravidade de estarmos a andar para trás na sinistralidade rodoviária, acresce que os nossos valores são praticamente superiores em 70% aos valores médios europeus, o que deveria acender as luzes vermelhas aos responsáveis. A propósito, deixo aqui duas perguntas: fora do controlo de velocidade das auto-estradas, quando foi a última vez que o leitor foi mandado parar pela GNR por acção de rotina, ou viu mesmo uma patrulha a circular de forma preventiva?
Por seu lado, a estrada onde se verificou aquele acidente é um caso verdadeiramente inacreditável de falta de investimento público absolutamente necessário e urgente, sendo hoje mesmo um exemplo insuportável de incúria insustentável por parte do Estado. Se o seu traçado inicial foi um erro crasso de planeamento, o tempo entretanto decorrido e o número de mortes que lá se têm verificado justificariam uma atenção redobrada para este problema. Exactamente o contrário do que se tem passado. As promessas não cumpridas têm-se sucedido ao ritmo do desfazer do que anteriores governantes tinham igualmente prometido. O IP3 é actualmente um imenso “ponto negro”, constituindo uma autêntica estrada da morte. Circular por lá é um pesadelo para todos os automobilistas, permanentemente em risco de se verem envolvidos em acidentes, sem que para isso em nada contribuam, apenas pelas miseráveis condições de circulação.
Enquanto não se fazem as necessárias obras que reponham condições minimamente aceitáveis de segurança de circulação, fica aqui um desafio aos autarcas dos municípios atravessados pelo IP3: juntem-se e encontrem uma maneira, seja ela qual for, mesmo que eventualmente contra os regulamentos em vigor, de proibir a circulação de veículos pesados de mercadorias nesta estrada, com excepção obviamente daqueles com origem ou destino nas povoações que serve directamente. Na verdade, a circulação destes pesados nem nunca deveria ter sido autorizada, quando existe alternativa pela A25 e A1, já que o IP3 nunca teve as condições de segurança necessárias para o tráfego pesado que o procura.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 9 de Setembro de 2019

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Do que o país não precisa–parte três


Estando o país a pouco mais de trinta dias das eleições legislativas, já não deverão surgir grandes novidades relativamente ao que os diversos partidos têm apresentado como ideias e propostas para o nosso futuro colectivo. Até porque as campanhas eleitorais, ao longo dos anos, se foram reduzindo a umas frases produzidas pelas agências de comunicação, a serem repetidas pelos candidatos dos diversos círculos eleitorais e já lá vai o tempo em que os candidatos eram escolhidos pelas suas capacidades profissionais e políticas. Hoje, usa-se e abusa-se de critérios de fidelidade às direcções partidárias, a quotas de paridade, apresentando-se mesmo como uma vantagem a grande juventude dos candidatos. Se, nos dias de hoje, já é de grande complexidade governar em cenários em grande parte desconhecidos, imagine-se como será para quem não faz a menor ideia das consequências das suas escolhas, por ainda não ter cultura histórica.
E se há necessidade de políticos que saibam o que estão a fazer! A política da última década foi tão traumática que os portugueses parecem anestesiados, preferindo qualquer coisa, por mais fraca que seja, a terem que passar de novo por toda a desgraça que conheceram com a chamada da troika. O reverso do êxito do défice significa a maior carga fiscal de que há memória e que continua a subir, a manutenção de uma dívida pública bruta a um nível gigantesco, um investimento público miserável ao nível de 2003 (formação bruta de capital fixo), uma dose de cativações  inacreditável fazendo lembrar os anos 30 do século passado e um Estado caloteiro que deve dinheiro a tudo e todos (transportadoras de estudantes, fornecedores de livros escolares, fornecedores hospitalares, etc. etc.) devendo mesmo mais de 160 milhões de euros ao Fundo de Estabilização da Seg. Social.
O crescimento da economia, apresentado como um sucesso por ser superior ao da média europeia é confrangedor, estando nós a caminho do último lugar europeu, sendo sucessivamente ultrapassados pelos poucos países ainda abaixo de nós. Na realidade, a média europeia é baixa por estar a ser puxada para baixo pelo comportamento das grandes economias da França, da Itália e agora da própria Alemanha que fazem prever uma nova crise. Numa reedição patética da “teoria do oásis”, é-nos dito que Portugal está a fugir a essa crise. Quando, como Ernâni Lopes ensinava, o que se passa é que, face aos aseus atrasos atávicos e dependência excessiva do Estado, a nossa economia demora mais tempo a entrar em crise, mas esta é depois mais profunda e demoramos mais tempo a sair dela não recuperando o ponto em que estávamos antes a não ser passado muito tempo. A isto se chama resiliência da economia portuguesa, que é muito diferente de resistência.
Do que Portugal não precisa mesmo é que os políticos ignorem a realidade, contando historietas de embalar aos cidadãos, continuando com um “crescimento” que não significa mais do que a continuação permanente da nossa pobreza relativa. A não ser que Portugal, tal “jangada de pedra” como a de Saramago, se solte da Península Ibérica e se desloque cinco graus para Sul, entrando num mundo completamente outro em termos culturais e de exigência económica e social.
Post scriptum: Reagindo à minha crónica recente sobre a regionalização, o meu colega Eng. Santos Veloso enviou ao director do Diário de Coimbra uma carta em que, criticando o que escrevi, expõe as suas próprias opiniões sobre o assunto. Tendo eu próprio já sido um regionalista, reconheço o valor de alguns dos argumentos expostos na carta, embora não concorde eles na totalidade. Mas há algo naquela carta que não pode deixar de ser salientado. O Sr. Eng. Santos Veloso manifesta a sua discordância com uma elegância e respeito pela diferença de opiniões que é uma lufada de ar fresco no actual ambiente degradado da discussão política em que a defesa de opiniões e o contraditório público desapareceram, transformando-se numa guerra de trincheiras em que cada lado dispara e se esconde de imediato. Por isso, e pela elegância rara de escrita, não só cumprimento o Colega Santos Veloso, como lhe agradeço a publicação da sua posição sobre a regionalização, usando para tal o meu escrito como ponto de partida.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Setembro de 2019