segunda-feira, 18 de novembro de 2019

De novo, Pedro e o lobo



 Há uns tempos conversava com um amigo sobre a possibilidade de determinada personalidade política se candidatar numas eleições em que surgiria como candidato principal. Alguém opinou que essa possibilidade estaria arredada porque grande parte do eleitorado estaria sabedor de atitudes e práticas da tal personagem, ao longo de anos, que o levaria a ser punido eleitoralmente.
Mas será que aquele raciocínio é hoje adequado à nossa realidade? Não se pense que o autor destas linhas tem a mais leve veleidade de querer impor regras morais ou de se arvorar em pregador de ética. A intenção deste escrito é apenas a de abordar alguns aspectos da actualidade, tentando encontrar caminhos que nos possam evitar enganos e manipulações pela forma como a informação é hoje tantas vezes usada para criar sensações e ambientes que nada têm a ver com a realidade dos factos.
Os meios de comunicação social sofreram, nas últimas décadas e sofrem ainda, alterações profundas cujas consequências ainda estamos longe de perceber na sua totalidade. Na generalidade, os jornais começaram por misturar opinião com informação, abrindo caminho a uma confusão que leva a tudo menos uma informação isenta que permita aos leitores formar a sua própria opinião em face de dados fidedignos. Lamentavelmente muitos jornalistas, felizmente não todos, entraram no caminho fácil de misturar os seus sentimentos e opções políticas próprias com a informação que veiculam. Em consequência da falta de saúde financeira dos jornais, muitas redacções foram sendo preenchidas com estagiários ou jornalistas com contratos a prazo, cuja independência é muito frágil.
Os novos meios, baseados na internet, vieram complicar ainda mais a transmissão livre e rigorosa dos acontecimentos, exigindo dos receptores da mensagem uma capacidade de análise muito mais desenvolvida do que anteriormente. Em particular nas redes sociais, tornou-se necessário ir verificar da veracidade do que vai surgindo, mas também da data das notícias, sendo frequente que elas voltem à superfície meses ou anos depois de se terem verificado, o que altera por completo o seu significado. Depois, os algoritmos que estão por trás do facebook ou do instagram detectam automaticamente aquilo que cada um procura com mais frequência, passando a propor notícias e fontes afins, puxando artificialmente para um ou outro lado aquilo que é apresentado a cada utente e assim manipulando a própria realidade que cada um percepciona.
A rapidez dos novos meios leva a um atropelar contínuo das notícias, transformando em velho aquilo que no dia anterior fora uma grande novidade, substituindo-se uma indignação por outra e logo pela seguinte. Como as nossas mentes não estão habituadas a esta velocidade de substituição de recepção, tratamento e reacção, estes escândalos sucessivos deixam de ser genuínas manifestações de repúdio para se transformarem em puro entretenimento de massas.
Em Portugal, por uma razão ou por outra, actualmente não há quase um dia em que não surjam notícias sobre acções policiais em gabinetes ministeriais, autárquicos ou de empresas públicas e privadas. De muitas delas nunca mais se ouve falar, provavelmente porque se verificou que as queixas ou as suspeitas eram infundadas. Mas os casos que se desenvolvem até formulação de acusação são em número suficientemente grande para que todos os dias surjam novas ou requentadas notícias sobre os processos judiciais correspondentes. Será quase desnecessário recordar aqui os casos de justiça de banqueiros, de ministros e mesmo de um ex primeiro-ministro que não saem das notícias há cinco ou mais anos.
Este sucessivo e constante martelar sobre comportamento reprovável de representantes das elites sociais, políticas, económicas e financeiras não pode deixar de ter consequências sobre a forma como essas atitudes são olhadas pelo cidadão comum. O passo para considerar que “são todos iguais” é pequeno, tal como o é o de “normalizar” esses comportamentos, assim se respondendo à questão formulada no início desta crónica.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Novembro de 2019

Gladiator - Now We Are Free Super Theme Song

Borodin, In the Steppes of Central Asia, Polovtsian dances (Svetlanov)

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

ÀCERCA DE MUROS



Os muros que separam comunidades são um símbolo do pior de que a raça humana é capaz. E, infelizmente, há-os para todo os gostos. Desde a Grande Muralha da China com os seus 6.000 km de extensão e que é hoje apenas uma atracção turística, até aos muros com que os presidentes americanos Clinton, Obama e agora Trump têm vindo a tentar impedir a entrada clandestina de mexicanos nos EUA, passando pelo muro da Cisjordânia, há-os para todos os gostos.
Mas a História recente regista um que deveria fazer pensar duas vezes todos aqueles que sonham com a capacidade dos muros para reter a liberdade das pessoas. Ao contrário dos outros, cuja edificação encontra sempre como justificação proteger “os de dentro e o seu sistema de vida contra “os de fora” que os pretenderão invadir, o Muro de Berlim, dissessem os seus construtores o que dissessem, só teve um objectivo: impedir os berlinenses de sair, abandonar o regime que os oprimia.
Após o fim da hecatombe europeia da Segunda Guerra Mundial, Estaline aproveitou os avanços militares dos seus exércitos a caminho de Berlim e forçou, pela força e sem qualquer respeito pela vontade democrática dos respectivos povos, o estabelecimento de regimes comunistas por toda parte oriental da Europa. Apenas escapou a Grécia depois de uma guerra civil entre 1946 e 1949, porque as potências ocidentais apoiaram as forças democráticas contra os comunistas que, também na Grécia, tentavam tomar o poder pela força das armas. Sobre o Leste da Europa caiu o que Churchill chamou uma “cortina de ferro desde Stettin no Báltico até Trieste no Adriático”. Acerca do que se passou na Europa nesses tempos escuros da 2ª Grande Guerra e dos que se seguiram no leste europeu, não há como ler a história do camponês romeno Johann Moritz descrita no notável romance “A 25ª Hora” de Virgil Gheorghiu.
Na Conferência de Potsdam a Alemanha derrotada foi dividida entre as potências vencedoras. A partir de 1947 as zonas americana, britânica e francesa constituíram a República Federal da Alemanha, enquanto a parte de influência soviética se manteve à parte, dominada pelo partido comunista, na República Democrática Alemã. A capital, Berlim, ficou dentro da RDA, mas ficou também dividida em duas partes, à semelhança do resto do país. Com surpresa, os berlinenses acordaram no dia 13 de Agosto de 1961 para descobrirem que, desde a madrugada, a RDA estava a construir um muro dentro da cidade, assim separando milhares de famílias. O regime comunista conseguia assim, na prática, estancar a sangria de mais de 3 milhões de alemães de leste que tinham fugido para o ocidente, em boa parte através da parte ocidental de Berlim. O muro de Berlim ficou tristemente célebre pela sua agressividade ostensiva e pela ordem de atirar a matar sobre toda e qualquer pessoa que o tentasse ultrapassar, situação trágica que sucedeu muitas vezes, algumas das quais ficaram testemunhadas para sempre, através de registos fotográficos dramáticos.
Ficou célebre a frase do presidente americano John Kennedy ao visitar Berlim em Junho de 1963 para manifestar o apoio do mundo ocidental aos berlinenses sitiados: "Ich bin ein Berliner" ("Eu sou um berlinense", em alemão).
O “Muro de Berlim”, símbolo máximo da “Guerra Fria”, durou até 1989. Nesse ano, em que se comemoravam os 40 anos da RDA, o presidente soviético Gorbatchov visitou Berlim em Outubro, avisando o seu homólogo da RDA sobre a necessidade de acompanhar os tempos o que, poucos dias depois, levou à demissão de Honecker. No meio de imensa confusão em todo o bloco soviético, com países a decidirem ir para eleições, o seu sucessor, Egor Krenz viu-se envolvido num turbilhão de movimentos de rua e perdeu a mão da situação. A verdade é que nem a tristemente célebre polícia política comunista, a Stasi, que controlava a sociedade da RDA com mão de ferro através de mais de 90.000 colaboradores directos e de cerca de 180.000 informadores, isto num país com 16 milhões de habitantes, conseguiu garantir o controlo.
E, no dia 9 de Novembro de 1989, passam agora trinta anos, aconteceu o que, três meses antes, ninguém seria capaz de prever: a população berlinense literalmente saltou para cima do Muro e, de todas as formas, destruiu-o em pouco tempo, perante a passividade e espanto dos polícias, mudando o mundo já que, depois disso, nada mais foi como dantes em toda a Europa e mesmo no mundo, numa História ainda a fazer-se.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 11 de Novembro de 2019

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DOS PORTUGUESES



Depois da tomada de posse do novo Governo saído das eleições de 6 de Outubro e da apresentação e discussão do seu Programa na Assembleia da República, já é possível tirar algumas conclusões sobre a actual situação política e o que esperar para o futuro próximo.
Das últimas eleições saíram dez partidos com representação parlamentar, um número até hoje nunca visto. Como novidades entraram o Livre, a Iniciativa Liberal e o Chega, cada um com um representante. O PAN surpreendeu ao obter 4 lugares, apenas menos um que o CDS que viu a sua representação diminuída em treze lugares. Já o PSD perdeu dez lugares, ficando com 79 deputados. O BE manteve os seus 19 lugares, tendo a CDU perdido cinco lugares e ficando com 12 deputados. O PS, ao ser vencedor das eleições, obteve mais vinte e dois lugares ficando o seu grupo parlamentar com 108 deputados. Sobre quem ganhou e perdeu, estes são os números.
Contudo, os números têm ainda outros significados, para além da conversa habitual para enganar crédulos que é afirmar que o eleitorado quis isto ou aquilo. Um significado profundo é o da abstenção que subiu a um valor nunca antes visto, acima de metade do eleitorado: 51,43%. Pese embora se pressinta um empolamento artificial dos cadernos eleitorais, é certo que há uma grande parte de eleitores que não participam nesse momento crucial da vida democrática, que são as eleições.
Como resultado das eleições, tudo mudou. O partido Socialista é, desta vez, o maior partido e o PSD o segundo, numa alteração radical da situação. Embora não tenha tido a almejada maioria absoluta, desta vez o PS sente que está à vontade para governar, não necessitando de firmar acordos escritos com os partidos que o apoiaram durante a anterior legislativa. Basta-lhe lembrar, como o fez com completa clareza o ministro Santos Silva no encerramento do debate do programa do Governo, e cito: "Só é possível retirar as condições básicas de governação ao Governo do PS através da constituição de uma coligação negativa e contranatura entre o centro-direita e direita e todas as forças à esquerda do PS - e todos sabemos, na maioria parlamentar, que isso seria uma traição ao nosso eleitorado".
Isto é, o PS sente-se finalmente na confortável situação de ser o fiel da balança da democracia portuguesa que desde sempre almejou. Se na anterior legislatura os acordos foram com a esquerda apenas para evitar o governo da direita, nesta nova situação o PS considera-se o centro, o que lhe permite ir acordando à esquerda ou à direita. Entretanto vai fazendo juras de amor com a esquerda que lhe proporcionou a vantagem da paz nas ruas e nos sindicatos nos últimos quatro anos, pelo que serão de prever negociações, mas desta vez privadas.
O que nos traz à situação da direita, principalmente do PSD, já que o CDS está com outros problemas que têm mais a ver com a sobrevivência a curto prazo.
A questão do défice, que foi motivo de discussão e de querela ideológica durante todo o século XX, foi finalmente ultrapassada por força da pertença à União Europeia e ao Euro. À sua maneira, claro, o PS aderiu às “boas contas” e mesmo o resto da esquerda fala agora apenas em evitar grandes excedentes orçamentais que coloquem o investimento em causa, como o disse o BE no Parlamento. Isto é, deixou de ser uma bandeira típica da direita para ser hoje um consenso. Se houve alguma vantagem trazida pela “Geringonça”, esta não será certamente a menor.
O PSD está, assim, perante uma situação completamente nova, tendo que se assumir como alternativa ao PS, eliminando todo e qualquer sentimento de que lhe possa servir de “muleta” como fizeram o BE e o PCP durante 4 anos inteiros. Não poderá nunca deixar que se instale a ideia de que o PS é o centro do regime e terá que encontrar os temas que lhe permitam afirmar-se como a alternativa ao PS, sem o que se verá reduzido à irrelevância. Até porque o sistema mexicano de um grande partido ao centro produz a normalidade de que hoje tanto se fala como necessária, mas normalidade essa que foge à mudança, não produz crescimento que se veja e só ajudará a esse lento deslizar que já está a levar Portugal para o lugar de “lanterna vermelha” da Europa.
Desenho reproduzido do jornal Público

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Novembro de 2019