segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A EPIFANIA DA ESQUERDA


Numa reunião de apresentação da proposta governamental do Orçamento Geral de Estado para 2020 ao partido Socialista, o ministro das Finanças Mário Centeno garantiu, por mais de uma vez, ser este OGE de esquerda. Ao contrário de muita gente, à direita e mesmo na comunicação social, eu dou toda a razão ao ministro das Finanças nesta sua observação.
As «contas certas», como agora o Primeiro-ministro não se cansa de dizer, são fundamentais para o funcionamento da economia e, essencialmente, para o pagamento da dívida pública que cresce nominalmente de cada vez que o Estado tem défice. Para a esquerda, trata-se de uma verdadeira descoberta e só podemos ficar satisfeitos com isso, já que deixa de ser apenas a direita a defender as «contas certas», passando as mesmas a ser uma base comum, o que só pode ser saudado pela própria direita ao ver a esquerda juntar-se a ela neste seu novo entendimento. Para não ir mais longe, todos nós nos recordamos de José Sócrates, ainda há poucos anos, defender que «a dívida pública não é para se pagar, é para se ir gerindo». Um proeminente político socialista, hoje ministro, chegou mesmo a declarar que «basta ameaçarmos não pagar, que as pernas dos banqueiros alemães até se lhes tremem». E atribui-se a outro político socialista, que foi presidente da República, a afirmação de que «há mais vida para além do défice», em que se resumia uma posição política de toda a esquerda naquela matéria que seria, precisamente, a que estabelecia a maior clivagem ideológica entre esquerda e direita portuguesas. Não será preciso mais para concluir que houve, portanto, uma alteração radical da posição da esquerda portuguesa sobre o significado do défice e da dívida pública. As razões profundas desta mudança crucial serão, eventualmente, conhecidas um dia, mas não deverão andar longe da imposição da realidade sobre a fantasia, muito pela participação na União Europeia e, em particular, pelas ambições de alguns políticos socialistas.
Digo epifania da esquerda, e não apenas do partido Socialista, por boas razões. Bem poderão o PCP e o BE soltar uns resmungos (chamam-lhes avisos) sobre a falta que os dinheiros para pagar a dívida fazem na falta de investimento público e na degradação da prestação dos serviços públicos, de cujo estado os portugueses começam, finalmente, a aperceber-se. Na realidade, andaram quatro anos a aprovar OGE’s cuja principal característica era precisamente fazer aproximar o défice de zero, a todo o custo. E no OGE para 2020 não deverá ser diferente, ainda que por abstenção, já que o objectivo será o mesmo: conseguir que o Orçamento seja aprovado.
Eis-nos, portanto, chegados, finalmente, ao primeiro OGE, depois do 25 de Abril, em que não se discute a necessidade de «contas certas». Demorou, mas chegámos. A partir daqui, já não se discutirá o défice zero ou mesmo excedente, mas partir-se-á desse ponto para depois se discutir o resto. E o resto são a qualidade da despesa pública e o montante e justiça dos impostos, isto é, a receita. Aqui, sim, entram as diferentes propostas da direita e da esquerda.
É nesta perspectiva que, pessoalmente, defendo que o ministro das Finanças tem toda a razão em considerar o OGE para 2020 como sendo de esquerda. A carga fiscal é altíssima, talvez a maior de sempre, já não se devendo tal apenas aos impostos indirectos que, como todos sabemos, são os socialmente mais injustos, mas também à subida do próprio IRS para as famílias. Bem pode a esquerda argumentar que não somos o país europeu com a carga fiscal mais elevada, porque o que as famílias sentem é a «pressão fiscal» que relaciona os impostos com o nível salarial e, aí, somos mesmo dos piores. Como é bem conhecido, se há matéria em que direitas e esquerdas divergem é precisamente nos impostos, com a direita a propor a sua diminuição e a esquerda a usar todos os argumentos para os manter ou aumentar. A outra diferença histórica entre direita e esquerda reside na despesa. À defesa pela direita da reestruturação do Estado para a reduzir, as tais reformas estruturais, a esquerda tem respondido sistematicamente que está a defender o «estado social». Também aqui o OGE 2020 é bem de esquerda.
Tal como na questão do défice e da necessidade de diminuição da dívida a esquerda se juntou à direita, resta aguardar que o faça noutras matérias essenciais para que o crescimento efectivo e sustentável de Portugal se torne numa realidade. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Janeiro de 2019

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

E TUDO O RIO LEVOU


Uma conversa que ouvi na rua na semana passada levou-me a escrever sobre o sucedido no baixo-Mondego, em consequência da passagem da tempestade Elsa nos dias 19 e 20 do passado mês de Dezembro. Nessa conversa aludia-se a que «quando se vai contra a Natureza, ela viga-se sempre». Trata-se de uma consideração que se ouve entre nós com frequência e que reflecte algum pessimismo crónico mas, sobretudo, uma aceitação de inevitabilidade de derrota do Homem perante a Natureza, com a consequência imediata de desculpabilizar eventuais responsabilidades. Esquece-se que toda e qualquer obra de Engenharia desafia a Natureza, ao criar ambientes artificiais que permitem ao Homem não só proteger-se de ambientes naturais agressivos, mas igualmente desenvolver tecnologias que permitem fabricar dispositivos para ultrapassar as leis naturais limitativas como a gravidade. As cidades, as estradas, as barragens, mas também os aviões, os automóveis, os telemóveis ou a internet são a prova diária disso mesmo, tal como o foi a ida do Homem à Lua. Claro que, daqui a uns 5 mil milhões de anos o Sol, a estrela que nos fornece a energia para existirmos, entrará em processo de expansão e posterior redução drástica até se tornar numa inofensiva anã branca. A vida na Terra terá terminado há muito com o aumento extremo da temperatura e o nosso planeta provavelmente vagueará morto pelo espaço. Mas isto é a uma escala de tempo que não nos diz nada a nós que aqui vivemos, hoje.
O chamado «empreendimento do Baixo Mondego» é uma obra pensada precisamente para defender os terrenos agrícolas dessa área contra as cheias do rio que, periodicamente, destruíam tudo com grandes prejuízos. É uma obra projectada e construída nos anos 70 e 80, constituída por diversas grandes obras hidráulicas: as barragens da Aguieira, Fronhas e Raiva e os diques de contenção do Baixo-Mondego. Também o Açude-Ponte fez parte desta obra enorme, criando um lençol de água permanente em Coimbra. 
Curiosamente, embora poucos conimbricenses o saibam, dele sai um canal dedicado apenas a fornecer água às celuloses da Figueira da Foz que, aliás, não permite que a cota de água desça abaixo de determinado valor. O projecto do «empreendimento do Baixo Mondego», contudo, não foi executado na sua totalidade. Por construir ficou a barragem de Girabolhos, necessária para o controlo das cheias. A sua construção foi iniciada mas, em 2016, o anterior governo decidiu pará-la e suspender o Plano de Barragens do governo Passos Coelho. Uma obra desta dimensão e com estas características necessita de duas coisas; manutenção e adaptação. A necessidade da manutenção é óbvia mas, como é tantas vezes habitual entre nós, não tem praticamente existido, não havendo sequer uma entidade específica com essa finalidade. Por exemplo, das seis bombas de extracção de água previstas, apenas uma funciona e os sifões de escoamento encontram-se sistematicamente entupidos com vegetação. Já a necessidade de adaptação deve-se a vários factores: as alterações climáticas que provocam regimes de chuva muito diferentes dos que se verificavam quando o projecto foi elaborado e que são agora mais gravosos com grandes picos de chuva intensa e períodos mais longos de estiagem; o número elevado de incêndios na área altera também gravosamente as condições hidrológicas, ajudando a aumentar as cargas no sistema.
E vieram os dois dias de chuva muito intensa na bacia hidrográfica do Mondego que provocaram caudais no Açude-Ponte, dizem-nos que de 2.400 m3 por segundo, quando o projecto previa um máximo de 2.000.
O inevitável sucedeu: as águas do Mondego tudo levaram na frente. Os diques do canal ficaram danificados a juzante do Açude-Ponte, logo a partir do Choupal e rebentaram mesmo em dois locais, provocando a invasão dos terrenos agrícolas pelas águas, com prejuízos económicos que ainda ninguém sabe contabilizar. Boa parte das areias retiradas do rio no último ano e que foram depositadas a juzante do Açude-Ponte pela Câmara Municipal de Coimbra sob indicação impositiva da (in?)competência técnica da Agência Portuguesa do Ambiente foi também levada pela águas, espalhando-se pelos terrenos agrícolas, ajudando aos prejuízos.
Mas houve algo mais levado pelas águas: a credibilidade de governantes e instituições. Desde logo a credibilidade do ministro do Ambiente que, perante o sucedido, não encontrou nada mais oportuno do que afirmar que as aldeias têm que mudar de local. Depois, o governo da «geringonça» que suspendeu a construção da barragem de Girabolhos; uma das suas personalidades mais representativas, quando a necessidade de acumular água para os verões secos é premente, chegou a afirmar que as barragens têm um problema, «a água evapora-se»! Apetece citar o meu colega e Prof. Catedrático de Hidráulica Alfeu Sá Marques que costuma dizer que «até os camelos sabem que, para atravessar o deserto, é preciso levar uma reserva de água». Por fim, todos os governos que, desde os anos oitenta, se mostraram incapazes de completar a obra e, em particular, de constituir uma entidade responsável pela exploração deste importante dispositivo económico da região.

Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Janeiro de 2020

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

DA AVALIAÇÃO POLÍTICA


Quando se aproxima o fim de períodos de tempo como sejam anos, décadas ou séculos, é quase obrigatório fazer-se uma avaliação do que sucedeu ou do que foi conseguido. Mas há avaliações, particularmente de governantes, que só se tornam possíveis de fazer algum tempo depois da sua saída definitiva do poder. Os critérios para fazer essa avaliação variam também muito sendo quase sempre impossível encontrar unanimidades de opinião.
Apesar das diferenças de critérios, uma pergunta será fácil de responder para avaliar uma governação: o seu país ou o mundo, ficaram melhores ou piores à saída do poder, relativamente ao seu início de funções? Ou dito de outra forma, qual foi a herança que deixaram?
Félix Houphouët-Boigny foi o primeiro presidente da Costa do Marfim, tendo governado o país entre 1960 e 1993. Foi um presidente moderado, que conseguiu notáveis sucessos económicos para o seu país. A sua acção internacional, em particular em África, foi reconhecida, levando a que, em 1989, a UNESCO tivesse criado o Prémio pela Paz Félix Houphouët-Boigny. 
Contudo, a governação de Houphouët-Boigny teve igualmente aspectos que, no mínimo, se poderão considerar controversos. Transferiu a capital do país de Abidjan para a sua terra natal, Yamoussoukro, onde construiu um aeroporto capaz de receber o Concorde e erigiu a maior catedral do mundo, que custou 300 milhões de dólares. Construiu ainda um grande palácio presidencial rodeado por um lago artificial onde mandou colocar crocodilos. Como é natural, depois da sua morte em 1993, a capital voltou a ser Abidjan, tendo a anterior sido praticamente abandonada. O país regrediu económica e socialmente de forma acentuada e é, de novo, um dos países mais pobres de África. Mas houve algo de que toda a gente se esqueceu, os crocodilos do lago do antigo palácio presidencial, cujo número aumentou de uma forma assustadora, tendo invadido os cursos de água naturais da região. E é assim que, hoje, as pessoas não se podem aproximar de rios e ribeiras sob pena de serem atacadas pelos animais. A herança da governação de Félix Houphouët-Boigny, na terra em que nasceu, acaba por ser a praga de crocodilos perigosos.
Este pequeno exemplo serve para mostrar como a governação de alguém que foi no seu tempo tido como um exemplo foi atravessada por incongruências que, anos depois, acabaram numa herança negativa. Neste caso, para além de despesas sumptuárias dispensáveis, houve algo que falhou gravemente na governação: a falta de sustentabilidade do desenvolvimento económico. A única herança que é sentida actualmente é mesmo o perigo que os crocodilos representam para a população.
E entre nós? Qual a herança deixada por cada um dos responsáveis políticos que temos escolhido em eleições? Desde os diferentes presidentes de Câmara até aos primeiros-ministros e presidentes da República, quais foram os legados que nos deixaram com as suas governações? No caso dos presidentes da República as suas eleições são pessoais, pelo que as responsabilidades das suas actuações também o são, sendo fácil apreciar os legados políticos de Eanes, Soares, Sampaio, Cavaco e, daqui a uns anos, Marcelo. Já quanto aos outros governantes, locais e nacionais, foram escolhidos através dos resultados eleitorais dos partidos que os indicaram para tal. 
Por mais personificadas que sejam as suas actuações, não é possível separá-las dos respectivos partidos, em função do estabelecido constitucionalmente. Sendo assim, quais as heranças que Mendes Abreu, Moreira, Mendes Silva, Machado, Encarnação, Barbosa de Melo deixam para Coimbra e seus munícipes? Tal como Soares, Sá Carneiro, Balsemão, Cavaco, Guterres, Barroso, Santana, Sócrates, Passos, Costa nos governos PS e PSD. Será que algum nos deixou crocodilos, ainda que de forma simbólica? Depois de amanhã entramos num novo ano. Não nos fará mal, fora de campanhas eleitorais, fazer um pequeno esforço de memória e tentarmos proceder a uma avaliação do que a acção de todos estes governantes nos legou, deixando de lado o dia-a-dia e, se possível, as palas partidárias ou ideológicas que tantas vezes nos enviesam as perspectivas da realidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Dezembro de 2019

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Prémio Gandhi de Educação para a Cidadania

E é este o tema: «princípios éticos para o bem-estar animal»

É para rir, ou é para chorar com tamanha parvoíce?

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

AMIZADE


Um dos fenómenos do nosso tempo é o surgimento de uma nova solidão que vem disfarçada de companhia permanente. As redes sociais, com as suas propostas de novas «amizades» com convites sempre em número crescente conseguem dar a impressão de imensa companhia mas, na realidade, não passam de um écran que, ao desligar, nos devolvem à realidade, tantas vezes vazia de contacto humano. As redes sociais, seguindo a senda do «facebook» criaram a figura dos «amigos» para designar as ligações pessoais através da Internet que passou a ter um significado completamente diferente daquele que tradicionalmente lhe é atribuído. Como o seu nome indica, o funcionamento destas estruturas é em rede, pelo que os «amigos» chamam outros, muitas vezes sugeridos pelos próprios algoritmos que lhes alimentam os motores. Depois, uma espécie de protocolo não escrito leva a uma série de procedimentos a seguir, no que respeita a «gosto», ou comentários e respectivas respostas, que sugere o estabelecimento de relações com aspecto de serem especiais. Quem viveu antes da existência e difusão destas redes à escala planetária, sabe muito bem o que são amigos e, eventualmente, manterá alguns das suas listas da internet, outros serão mantidos fora dessas redes. Contudo, quem tomou consciência de si já depois do surgimento das redes sociais, isto é, os mais jovens, terá alguma dificuldade em estabelecer claramente essa diferença, até porque grande parte da sua vida passa-se na net tendo, por exemplo, abandonado a televisão clássica e passado a estabelecer contactos pessoais através na internet, com prejuízo dos contactos directos.
Quando se avança na idade, percebe-se bem o valor das amizades estabelecidas ao longo da vida, sentindo-se com maior peso a perda daquelas que se vão indo, mas aprendendo também a apreciar melhor os momentos que se passam na sua companhia. Percebe-se quão preciosos foram aqueles tempos aparentemente perdidos em conversas tantas vezes leves, mas em que mutuamente se abriam as almas em momentos de cumplicidade e de partilha de sentimentos. Aí nos demos uns aos outros, sem pedir nada em troca, mas olhando-nos olhos nos olhos e, sem o saber então, construindo em nós todos os alicerces da participação futura na sociedade.
Tenho, hoje em dia, a noção clara de que as tentativas históricas de justificar o comportamento humano através de teorias absolutas estão erradas e passam ao lado da complexidade dos seres que todos nós somos. As teorias do homem naturalmente bom introduzidas por Rousseau e que levaram ao iluminismo vieram a desembocar na construção do «homem novo» do socialismo científico e nas teorias biológicas degeneradas de Lysenko. Pelo contrário, os defensores da raça pura e da perfeição humana obtida pela luta das espécies acelerada e artificial forneceram aos teóricos nazis a justificação para a barbaridade do genocídio do holocausto.
É através de uma perfeita integração nas diferentes sociedades, em respeito pelos direitos do outro que homens e mulheres se podem afirmar na sua individualidade e personalidade próprias. Para isso têm que se conhecer a si mesmos, o que só acontece com um desenvolvimento de conhecimentos e bases culturais sólidas, mas também com um contacto directo com outros, necessariamente diferentes. O papel da amizade, mesmo para além da família, surge naturalmente como tendo uma importância crucial para a obtenção de uma saudável integração social. Os amigos, não aqueles de construção rápida que surgem e vão mas aqueles com quem construímos amizade em tempos despreocupados, são muitas vezes, em determinados momentos da vida, aquele apoio sem o qual nos seria muito mais difícil sair de situações pessoais de dor e sofrimento. Tenho para mim que a actual inundação de ansiolíticos e anti-depressivos na nossa sociedade se deverá, em boa parte, a uma degradação claramente visível das redes sociais tradicionais que nos serviam de amparo nas dificuldades. A nossa organização social actual está a desumanizar a sociedade. Muitas pessoas trabalham a distâncias grandes de casa, correm durante todo o dia para obterem ordenados medíocres que não lhes trazem satisfação nem segurança económica e pessoal. A primeira vítima é o relacionamento familiar, logo depois a possibilidade da satisfação da conversa calma e despreocupada com amigos. Os raros momentos de relaxe são passados em frente do computador, promovendo assim o crescimento do isolamento pessoal, enganado agora pelas redes da Internet que se tornam numa prisão física e intelectual.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Dezembro de 2019

Eivør Pálsdóttir: Tròdlabùndin (Trøllabundin) – 10.08.13