Uma conversa que ouvi na rua na
semana passada levou-me a escrever sobre o sucedido no baixo-Mondego, em
consequência da passagem da tempestade Elsa nos dias 19 e 20 do passado mês de
Dezembro. Nessa conversa aludia-se a que «quando se vai contra a Natureza, ela
viga-se sempre». Trata-se de uma consideração que se ouve entre nós com
frequência e que reflecte algum pessimismo crónico mas, sobretudo, uma aceitação
de inevitabilidade de derrota do Homem perante a Natureza, com a consequência
imediata de desculpabilizar eventuais responsabilidades. Esquece-se que toda e
qualquer obra de Engenharia desafia a Natureza, ao criar ambientes artificiais
que permitem ao Homem não só proteger-se de ambientes naturais agressivos, mas
igualmente desenvolver tecnologias que permitem fabricar dispositivos para
ultrapassar as leis naturais limitativas como a gravidade. As cidades, as
estradas, as barragens, mas também os aviões, os automóveis, os telemóveis ou a
internet são a prova diária disso mesmo, tal como o foi a ida do Homem à Lua.
Claro que, daqui a uns 5 mil milhões de anos o Sol, a estrela que nos fornece a
energia para existirmos, entrará em processo de expansão e posterior redução
drástica até se tornar numa inofensiva anã branca. A vida na Terra terá
terminado há muito com o aumento extremo da temperatura e o nosso planeta
provavelmente vagueará morto pelo espaço. Mas isto é a uma escala de tempo que
não nos diz nada a nós que aqui vivemos, hoje.
O chamado «empreendimento do
Baixo Mondego» é uma obra pensada precisamente para defender os terrenos
agrícolas dessa área contra as cheias do rio que, periodicamente, destruíam
tudo com grandes prejuízos. É uma obra projectada e construída nos anos 70 e
80, constituída por diversas grandes obras hidráulicas: as barragens da
Aguieira, Fronhas e Raiva e os diques de contenção do Baixo-Mondego. Também o
Açude-Ponte fez parte desta obra enorme, criando um lençol de água permanente
em Coimbra.
Curiosamente, embora poucos conimbricenses o saibam, dele sai um
canal dedicado apenas a fornecer água às celuloses da Figueira da Foz que,
aliás, não permite que a cota de água desça abaixo de determinado valor. O
projecto do «empreendimento do Baixo Mondego», contudo, não foi executado na
sua totalidade. Por construir ficou a barragem de Girabolhos, necessária para o
controlo das cheias. A sua construção foi iniciada mas, em 2016, o anterior
governo decidiu pará-la e suspender o Plano de Barragens do governo Passos
Coelho. Uma obra desta dimensão e com estas características necessita de duas
coisas; manutenção e adaptação. A necessidade da manutenção é óbvia mas, como é
tantas vezes habitual entre nós, não tem praticamente existido, não havendo
sequer uma entidade específica com essa finalidade. Por exemplo, das seis
bombas de extracção de água previstas, apenas uma funciona e os sifões de
escoamento encontram-se sistematicamente entupidos com vegetação. Já a
necessidade de adaptação deve-se a vários factores: as alterações climáticas
que provocam regimes de chuva muito diferentes dos que se verificavam quando o
projecto foi elaborado e que são agora mais gravosos com grandes picos de chuva
intensa e períodos mais longos de estiagem; o número elevado de incêndios na
área altera também gravosamente as condições hidrológicas, ajudando a aumentar
as cargas no sistema.
E vieram os dois dias de chuva
muito intensa na bacia hidrográfica do Mondego que provocaram caudais no
Açude-Ponte, dizem-nos que de 2.400 m3 por segundo, quando o projecto previa um
máximo de 2.000.
O inevitável sucedeu: as águas do
Mondego tudo levaram na frente. Os diques do canal ficaram danificados a
juzante do Açude-Ponte, logo a partir do Choupal e rebentaram mesmo em dois
locais, provocando a invasão dos terrenos agrícolas pelas águas, com prejuízos
económicos que ainda ninguém sabe contabilizar. Boa parte das areias retiradas
do rio no último ano e que foram depositadas a juzante do Açude-Ponte pela
Câmara Municipal de Coimbra sob indicação impositiva da (in?)competência
técnica da Agência Portuguesa do Ambiente foi também levada pela águas,
espalhando-se pelos terrenos agrícolas, ajudando aos prejuízos.
Mas houve algo mais levado pelas
águas: a credibilidade de governantes e instituições. Desde logo a
credibilidade do ministro do Ambiente que, perante o sucedido, não encontrou
nada mais oportuno do que afirmar que as aldeias têm que mudar de local.
Depois, o governo da «geringonça» que suspendeu a construção da barragem de
Girabolhos; uma das suas personalidades mais representativas, quando a
necessidade de acumular água para os verões secos é premente, chegou a afirmar
que as barragens têm um problema, «a água evapora-se»! Apetece citar o meu
colega e Prof. Catedrático de Hidráulica Alfeu Sá Marques que costuma dizer que
«até os camelos sabem que, para atravessar o deserto, é preciso levar uma
reserva de água». Por fim, todos os governos que, desde os anos oitenta, se
mostraram incapazes de completar a obra e, em particular, de constituir uma
entidade responsável pela exploração deste importante dispositivo económico da
região.
Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Janeiro de 2020
1 comentário:
Carlos Alberto Maia Marques Teixeira
segunda, 6/01, 15:47 (há 19 horas)
para mim
Distinto camarada e amigo:
O amargo travo de Dezembro arrebanhou , de um só golpe, as mais tolas opiniões sobre as cheias do Baixo Mondego.
Saúdo o teu senso e o teu saber sobre o "Munda" e a iluminada transparência das suas águas desde o princípio do Verbo.
Acredito piamente que desde sempre na génese de Portugal,os túrdulos velhos ou os lusitanos disso seriam testemunhas e herdeiros naturais, o assoreado "Bazófias"assumiria o papel do " Nilo da Lusitânia" fertilizando farta e biologicamente as terras baixas do seu caminhar.
O rio nunca tremeu de medos no seu destino de desaguar e nas epifanias de fé,transbordar os afectos era respeitar Endovélico e os excessos de adoração que adubaram os humanos nossos ancestrais e que aqui e agora recordo por rezar não saber.
Arcanjo Miguel, patrono de Portugal de tal matéria, foi, das orações de então , o seguro agrícola possível, mas relatam as lendas , que pouco ou nada valia perante o pôr e o dispor da lei da mais forte: A mãe natureza, nalguns ministra de Deus e em todos dona e senhora do mundo conhecido.
Atreveram-se os lusos ao leito do Mondego dar novos caminhos ...
Preguiçosos e gentios nos trabalhos de casa , apoucaram o manso na bonança das secas e o forte Aquiles e o seu calcanhar nas cheias.
Tenho mágoas sem fim desta antiga capital do Reino e do pouco saber das armas e dos barões assinalados do conhecimento.
A "morada da sabedoria "despediu-se da "cabra" e nem um vago adeus disse às horas de perdição.
A barragem de Girabolhos representa uma vogal fundamental no alfabeto da regulação da bacia hidrográfica do Baixo Mondego.
O resto é ir à areia,como o feito e o proveito dos gatos, num adiar sem jeito ou maneira.
Tarde ou cedo é necessário o urgente mudar do areal .
E mais não digo para não ser ou parecer um "Pulido Valente".
Polido e valente abraço a condizer com este "visto de dentro".
E "para bens" a você.
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