segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

E TUDO O RIO LEVOU


Uma conversa que ouvi na rua na semana passada levou-me a escrever sobre o sucedido no baixo-Mondego, em consequência da passagem da tempestade Elsa nos dias 19 e 20 do passado mês de Dezembro. Nessa conversa aludia-se a que «quando se vai contra a Natureza, ela viga-se sempre». Trata-se de uma consideração que se ouve entre nós com frequência e que reflecte algum pessimismo crónico mas, sobretudo, uma aceitação de inevitabilidade de derrota do Homem perante a Natureza, com a consequência imediata de desculpabilizar eventuais responsabilidades. Esquece-se que toda e qualquer obra de Engenharia desafia a Natureza, ao criar ambientes artificiais que permitem ao Homem não só proteger-se de ambientes naturais agressivos, mas igualmente desenvolver tecnologias que permitem fabricar dispositivos para ultrapassar as leis naturais limitativas como a gravidade. As cidades, as estradas, as barragens, mas também os aviões, os automóveis, os telemóveis ou a internet são a prova diária disso mesmo, tal como o foi a ida do Homem à Lua. Claro que, daqui a uns 5 mil milhões de anos o Sol, a estrela que nos fornece a energia para existirmos, entrará em processo de expansão e posterior redução drástica até se tornar numa inofensiva anã branca. A vida na Terra terá terminado há muito com o aumento extremo da temperatura e o nosso planeta provavelmente vagueará morto pelo espaço. Mas isto é a uma escala de tempo que não nos diz nada a nós que aqui vivemos, hoje.
O chamado «empreendimento do Baixo Mondego» é uma obra pensada precisamente para defender os terrenos agrícolas dessa área contra as cheias do rio que, periodicamente, destruíam tudo com grandes prejuízos. É uma obra projectada e construída nos anos 70 e 80, constituída por diversas grandes obras hidráulicas: as barragens da Aguieira, Fronhas e Raiva e os diques de contenção do Baixo-Mondego. Também o Açude-Ponte fez parte desta obra enorme, criando um lençol de água permanente em Coimbra. 
Curiosamente, embora poucos conimbricenses o saibam, dele sai um canal dedicado apenas a fornecer água às celuloses da Figueira da Foz que, aliás, não permite que a cota de água desça abaixo de determinado valor. O projecto do «empreendimento do Baixo Mondego», contudo, não foi executado na sua totalidade. Por construir ficou a barragem de Girabolhos, necessária para o controlo das cheias. A sua construção foi iniciada mas, em 2016, o anterior governo decidiu pará-la e suspender o Plano de Barragens do governo Passos Coelho. Uma obra desta dimensão e com estas características necessita de duas coisas; manutenção e adaptação. A necessidade da manutenção é óbvia mas, como é tantas vezes habitual entre nós, não tem praticamente existido, não havendo sequer uma entidade específica com essa finalidade. Por exemplo, das seis bombas de extracção de água previstas, apenas uma funciona e os sifões de escoamento encontram-se sistematicamente entupidos com vegetação. Já a necessidade de adaptação deve-se a vários factores: as alterações climáticas que provocam regimes de chuva muito diferentes dos que se verificavam quando o projecto foi elaborado e que são agora mais gravosos com grandes picos de chuva intensa e períodos mais longos de estiagem; o número elevado de incêndios na área altera também gravosamente as condições hidrológicas, ajudando a aumentar as cargas no sistema.
E vieram os dois dias de chuva muito intensa na bacia hidrográfica do Mondego que provocaram caudais no Açude-Ponte, dizem-nos que de 2.400 m3 por segundo, quando o projecto previa um máximo de 2.000.
O inevitável sucedeu: as águas do Mondego tudo levaram na frente. Os diques do canal ficaram danificados a juzante do Açude-Ponte, logo a partir do Choupal e rebentaram mesmo em dois locais, provocando a invasão dos terrenos agrícolas pelas águas, com prejuízos económicos que ainda ninguém sabe contabilizar. Boa parte das areias retiradas do rio no último ano e que foram depositadas a juzante do Açude-Ponte pela Câmara Municipal de Coimbra sob indicação impositiva da (in?)competência técnica da Agência Portuguesa do Ambiente foi também levada pela águas, espalhando-se pelos terrenos agrícolas, ajudando aos prejuízos.
Mas houve algo mais levado pelas águas: a credibilidade de governantes e instituições. Desde logo a credibilidade do ministro do Ambiente que, perante o sucedido, não encontrou nada mais oportuno do que afirmar que as aldeias têm que mudar de local. Depois, o governo da «geringonça» que suspendeu a construção da barragem de Girabolhos; uma das suas personalidades mais representativas, quando a necessidade de acumular água para os verões secos é premente, chegou a afirmar que as barragens têm um problema, «a água evapora-se»! Apetece citar o meu colega e Prof. Catedrático de Hidráulica Alfeu Sá Marques que costuma dizer que «até os camelos sabem que, para atravessar o deserto, é preciso levar uma reserva de água». Por fim, todos os governos que, desde os anos oitenta, se mostraram incapazes de completar a obra e, em particular, de constituir uma entidade responsável pela exploração deste importante dispositivo económico da região.

Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Janeiro de 2020

1 comentário:

João Paulo Craveiro disse...

Carlos Alberto Maia Marques Teixeira

segunda, 6/01, 15:47 (há 19 horas)

para mim
Distinto camarada e amigo:
O amargo travo de Dezembro arrebanhou , de um só golpe, as mais tolas opiniões sobre as cheias do Baixo Mondego.
Saúdo o teu senso e o teu saber sobre o "Munda" e a iluminada transparência das suas águas desde o princípio do Verbo.
Acredito piamente que desde sempre na génese de Portugal,os túrdulos velhos ou os lusitanos disso seriam testemunhas e herdeiros naturais, o assoreado "Bazófias"assumiria o papel do " Nilo da Lusitânia" fertilizando farta e biologicamente as terras baixas do seu caminhar.
O rio nunca tremeu de medos no seu destino de desaguar e nas epifanias de fé,transbordar os afectos era respeitar Endovélico e os excessos de adoração que adubaram os humanos nossos ancestrais e que aqui e agora recordo por rezar não saber.
Arcanjo Miguel, patrono de Portugal de tal matéria, foi, das orações de então , o seguro agrícola possível, mas relatam as lendas , que pouco ou nada valia perante o pôr e o dispor da lei da mais forte: A mãe natureza, nalguns ministra de Deus e em todos dona e senhora do mundo conhecido.
Atreveram-se os lusos ao leito do Mondego dar novos caminhos ...
Preguiçosos e gentios nos trabalhos de casa , apoucaram o manso na bonança das secas e o forte Aquiles e o seu calcanhar nas cheias.
Tenho mágoas sem fim desta antiga capital do Reino e do pouco saber das armas e dos barões assinalados do conhecimento.
A "morada da sabedoria "despediu-se da "cabra" e nem um vago adeus disse às horas de perdição.
A barragem de Girabolhos representa uma vogal fundamental no alfabeto da regulação da bacia hidrográfica do Baixo Mondego.
O resto é ir à areia,como o feito e o proveito dos gatos, num adiar sem jeito ou maneira.
Tarde ou cedo é necessário o urgente mudar do areal .
E mais não digo para não ser ou parecer um "Pulido Valente".
Polido e valente abraço a condizer com este "visto de dentro".
E "para bens" a você.