Que atravessamos tempos difíceis e
diferentes, todos nós o percebemos bem. A pandemia COVID-19 age como se fosse
um autêntico aspirador social e político, pouco deixando de fora do nosso
quotidiano normal. E é neste ambiente pouco saudável e propício aos mais
diversos desvarios que nascem e vicejam as mais diversas teorias da conspiração
e as mais desencontradas e disparatadas atitudes sociais. É obrigação de todos
e cada um de nós fugir a este ambiente insalubre e encontrar caminhos para o
fazer.
A História e o seu estudo e conhecimento é,
certamente, uma das melhores vias para o fazer. Oportunidade para encontrar
realidades passadas tantas vezes bem mais interessantes do que os mitos que
prevalecem sobre elas. Não que estes não tenham interesse pelo que lhes deu
origem e até por cultos populares que se entranharam culturalmente, mas
acontece tantas vezes que ocultam por baixo deles toda uma vivência cujo
conhecimento é extremamente interessante.
A epopeia marítima dos portugueses é bem
conhecida a partir dos feitos iniciados no início do séc. XV com a Ínclita
Geração. Talvez menos conhecidas são as batalhas navais em que participaram as
nossas armadas, tendo algumas delas sido de grande importância para Portugal,
mas também para a Europa. Relembro a grande Batalha de Diu em 1509 em que o
Vice-Rei das Índias D. Francisco de Almeida vingou a morte de seu filho
Lourenço mas sobretudo estabeleceu o domínio português naquelas paragens por
dezenas de anos. Ou a batalha de Matapão em 18 de Julho de 1717 em que a armada
portuguesa deu um apoio crucial às armadas de Veneza, Florença, Malta e França
para derrotar os turcos e definitivamente travar as suas pretensões de domínio
do Mediterrâneo.
Se recuarmos no tempo e pesquisarmos por D.
Fuas Roupinho na internet, de imediato nos aparecerão milhares de referências
com algo em comum: a famosa «Lenda da Nazaré». Em 1182, o alcaide do castelo de
Porto de Mós perseguiria um veado nas proximidades do litoral quando o animal
se dirigiu para uma falésia de grande altura não se tendo D. Fuas apercebido do
precipício, devido ao nevoeiro. Quando o cavalo já com as patas da frente no ar
estava prestes a cair, D. Fuas Roupinho apelou à Virgem Maria junto a uma gruta
onde se venerava uma imagem sua e o cavalo estacou de forma miraculosa com as
patas traseiras bem firmes no solo, parando aí e salvando-se a si e ao
cavaleiro. O Sítio da Nazaré é até hoje motivo de veneração aí se conservando,
segundo a tradição, a marca da ferradura de uma das patas do cavalo junto da
Capela da Memória. E é deste modo que D. Fuas Roupinho é recordado e foi assim
que o fiquei a conhecer da História de Portugal que me foi ensinada.
E no entanto…a história de D. Fuas Roupinho
bem merece ser lembrada por algo mais concreto do que por uma lenda, por mais
simpática que ela seja. Após a conquista de Lisboa pelos portugueses em 1147,
os mouros tentaram ainda durante vários anos a reconquista daquela cidade e,
não o conseguindo, passaram a realizar ataques (razias) nas suas redondezas e
mesmo na costa a norte. Até porque mantiveram o importante porto de Alcácer do
Sal até 1158. Por esta altura, D. Afonso Henriques tinha encarregado D. Fuas
Roupinho de organizar a armada portuguesa. Foi após uma daquelas razias mouras de
particular importância ocorrida em 1179, sob o comando do almirante Gamim ben
Mardanis proveniente de Sevilha, que D. Fuas Roupinho reuniu uma armada e
retaliou com uma surtida aos arredores de Huelva, subindo de seguida o rio
Guadalquivir até às proximidades de Sevilha e destruindo a armada muçulmana,
após o que regressou a Lisboa onde foi recebido da forma festiva que se pode
imaginar.
No ano seguinte foi a vez de Gamim ben
Mardanis retaliar e regressou à costa portuguesa com uma armada, tendo feito os
habituais saques na zona de Lisboa e desembarcando seguidamente mais a Norte, em
S. Martinho do Porto, com o objectivo de ir liquidar D. Fuas Roupinho em Porto
de Mós. Bem avisado, D. Fuas reuniu homens e foi dar batalha aos mouros,
tendo-os derrotado e morto o almirante Gamim. De seguida, foi para Lisboa e
reuniu navios para dar caça aos navios mouros que entretanto fugiam para Sul. O
recontro deu-se em frente ao Cabo Espichel e saldou-se com a vitória portuguesa
e o apresamento de navios e homens que se renderam e foram como tal trazidos
para Lisboa.
A batalha do Cabo Espichel foi a primeira
batalha naval portuguesa e D. Fuas Roupinho o primeiro comandante da armada
nacional, podendo chamar-se-lhe com propriedade o primeiro Almirante português.
E a sua história, para além da «lenda da Nazaré» bem merece ser conhecida, já
que mostra como, por vezes, a realidade pode ultrapassar a ficção.
NOTA:
os pormenores das operações navais de D. Fuas Roupinho foram colhidos na obra
«Grandes Batalhas Navais Portuguesas» da autoria do Capitão-de-Mar-e-Guerra
José António Rodrigues Pereira, numa edição de «a esfera dos livros»
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Fevereiro de 2021