terça-feira, 18 de outubro de 2022

As Cidades, geográficas e etimológicas

 


Segundo os dicionários, a palavra «cidade» tem a sua origem no latim, vindo de «civitas» que significava «condição de cidadão» que era quem vivia em cidade, significando hoje muito mais do que isso, como sabemos.

Ao longo dos tempos as sociedades evoluíram e é hoje claro que as cidades são cada vez mais os locais de preferência da humanidade para viver. Segundo a OCDE, mais de metade da população mundial vive já hoje em cidades, prevendo-se que em 2030 essa percentagem seja de 60% e em 2050 de 70%. Estes números são impressionantes, indo já longe os tempos em que as cidades eram apenas pontos de segurança e de recolha e redistribuição dos bens agrícolas. Ainda segundo a OCDE os centros urbanos são hoje o motor do crescimento económico, contribuindo para cerca de 60% do PIB global.

O crescimento das cidades traz evidentemente novos problemas, principalmente num tempo em que a sustentabilidade passou a ser um factor crucial para a própria existência da Humanidade. As questões relacionadas com a escassez da água, com as necessidades de energia do actual modelo de desenvolvimento e com a mobilidade têm que ser vistas como desafios à imaginação e capacidade tecnológica dos nossos tempos e não meramente como algo negativo.

Também entre nós se verifica o fenómeno da deslocação das pessoas para as cidades, com uma influência cada vez maior das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mas não só. No interior são as cidades médias que exercem um poder de atracção sobre os territórios vizinhos, como é o caso de Castelo Branco que como que suga a população dos municípios à sua volta. As cidades reflectem a evolução social. Por exemplo, em Coimbra, se a população aumentou cerca de 40% entre 1960 e os nossos dias, o número de famílias existente passou para quase o dobro, acompanhando o aumento de alojamentos; já o índice de envelhecimento calculado pelo número de idosos por cada cem jovens aumentou mais de seis vezes mas, claro, sem contar com os jovens que todos os anos procuram a Cidade para estudar aumentando em pelo menos um terço a população presente durante a maior parte do ano.


 

E é por estarmos tão habituados a ver as cidades como territórios de paz e progresso que se nos torna tão estranho que cidades, onde vivem milhares de pessoas de forma pacífica, possam ser objecto de violência militar como todos os dias podemos ver suceder nas cidades da Ucrânia, vítimas dos mísseis russos. Cidades esventradas, milhares de pessoas em fuga sem saber quando terão o azar de lhes entrar um míssil pela casa dentro e prédios inteiros que deixam de existir e passam a ser um buraco negro no meio dos sobreviventes. Claro que temos na memória as imagens de Londres e outras cidades inglesas a serem bombardeadas por aviões e pelas famosas V1 e V2 da Alemanha nazi, precursoras dos actuais mísseis, e da fuga das populações para os refúgios subterrâneos, mas não imaginaríamos poder assistir ao mesmo em nossas vidas: cidades e seus habitantes, homens, mulheres e crianças alvo de bombas assassinas de forma indiscriminada.

A cidade transforma-se no habitat natural da Humanidade, não só no aspecto físico ou geográfico. Entra também na nossa linguagem, ainda que não etimologicamente, mas de forma evidente. O leitor já reparou no número de palavras que contêm «cidade» como elemento morfológico? desde a publicidade à privacidade, da veracidade à capacidade ou da elasticidade à tenacidade, a cidade entra na nossa linguagem de forma quase permanente, o que é muito significativo dos tempos que vivemos.

Texto publicado originalmente no Dario de Coimbra em 17 de Outubro de 2022

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

As Pessoas


São por vezes pequenos simples momentos de realidade quotidiana que, mesmo apesar da sua aparente banalidade, inesperadamente nos transmitem emoções com uma força que não imaginávamos.

Num dia destes resolvi meter-me no carro de manhã cedo e ir por estradas desta minha Beira que me viu nascer e viver durante grande parte da vida e que amo de uma forma estranha e profunda. O objectivo era ir verificar o estado de uma casa de família na Aldeia de S. Francisco de Assis situada já na Beira Baixa, concelho da Covilhã, nos contrafortes sul da Serra do Açor, bem perto da Serra da Estrela. Para lá chegar, as estradas com muitas curvas encontram-se hoje em bom estado, ou mesmo muito bom, com excepção de um pequeno troço a seguir à barragem de Santa Luzia, já no concelho da Covilhã. Para quem não conhece esta barragem, aqui fica o desafio para uma visita, já que se trata de um local de beleza magnífica pela força transmitida pela Natureza, a que se junta um bom aproveitamento com parque de merendas, restaurante, bar e até uma piscina feita no interior da albufeira, com uma rede a proteger os banhistas. Ao alto da Pampilhosa da Serra, na nova estrada que serve o aeródromo dedicado ao combate a incêndios, a surpresa de um miradouro feito à maneira moderna, de forma a propiciar belas fotografias, para além de cadeiras que permitem, de forma confortável, apreciar uma paisagem de cortar a respiração. Curiosamente, e de forma de certa maneira algo surpreendente, as antigas aldeias dispersas pelos montes aparecem com as casas na sua maioria recuperadas, o que deverá ter razões que merecerão alguma análise posterior.

Na Aldeia de S. Francisco de Assis, antiga Bodelhão, é possível verificar a mesma situação, com bastantes edificações recuperadas. O que se torna estranho, dado que a larga maioria das casas não é ocupada em permanência, pelo abandono generalizado para outras paragens, incluindo emigração para a Europa e Américas. Para se ter uma ideia da actual e profunda desertificação, a população da freguesia é actualmente de 490 moradores, quando era de 2.508 em 1960. Estes números incluem o lugar da Barroca Grande, principal centro do couto mineiro das Minas da Panasqueira, o que significa que o número de habitantes da Aldeia é ainda mais reduzido, sendo a sede da Junta de Freguesia e o Centro Social Paroquial que apoia a terceira idade as principais (praticamente únicas) fontes de actividade.


Atingida a Aldeia que, apesar da distância a Coimbra ser de apenas cerca de 100 km, parece estar noutro mundo fiz a visita à casa da família o que aconteceu pela primeira vez sem companhia. Habitualmente vou com filhos e mesmo netos, o que não sucedeu desta vez. Razão para que o choque das memórias tenha desta vez sido fortíssimo. A recordação dos pedaços de vida feliz ali vividos desde tenra idade surge de forma estranha perante as paredes que já não abrigam ninguém, porque quem lá viveu já partiu há muito. E a consciência de que as memórias dessas pessoas, das situações vividas em comum, dos afectos, tudo isso continua apenas dentro de nós e connosco desaparecerão um dia. Ainda que se regresse aos locais onde se viveu, tal não deixa de ser verdade.

O que significa que, ao fim e ao cabo, as pessoas é que importam na nossa vida. Em tempos, ouvi um famoso Físico afirmar que muitas vezes o Homem tem o desejo de descobrir uma máquina que permita viajar no tempo, quando essa máquina já existe, na forma dos nossos filhos, netos e por aí fora.

Quando nos defrontamos com as nossas memórias e o passado, feliz ou menos feliz, regressa às nossas mentes podemos tomar a consciência de que somos apenas um elo numa corrente muito antiga e que esperamos ainda venha a durar muito tempo. E que, de facto, aquilo que verdadeiramente importa neste mundo são as pessoas e as relações que somos capazes de construir. Muito para além de paredes mais ou menos ricas e de bens materiais que hoje poderão parecer importantes, mas que no futuro alguém observará como meras curiosidade de um tempo que já foi.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Outubro de 2022

Fotografias da minha autoria 

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

O novo Dr. Estranhoamor

 


Muitos leitores destas linhas lembrar-se-ão certamente de um filme de 1964 de Stanley Kubrick, aliás um dos melhores filmes do realizador, que abordou o clima da Guerra Fria e inerente e perigoso equilíbrio baseado na ameaça nuclear bi-lateral.

Trata-se de uma comédia negra, em que sobressaem as três interpretações de Peter Sellers, para além de outros excelentes actores. Dizem os especialistas que Stanley Kubrick começou por abordar o romance «Alerta Vermelho» de Peter George como um filme sério, mas que depressa mudou o registo atendendo ao caricato da maioria das situações, embora baseadas numa realidade que pareceria impossível de acontecer. No filme, um general americano convence-se de que os soviéticos estão prestes a atacar os americanos. E decide bombardear uma cidade russa através do envio de um avião com bomba nuclear. Descoberto o incidente, os governantes dos dois lados tentam impedir o desastre nuclear, mas a tragédia é que ambas as potências se haviam dotado de sistemas tecnológicos independentes de comando humano, prontos a lançar um ataque nuclear maciço, perante um ataque do outro lado. O filme está repleto de cenas satíricas num ambiente de total insanidade em que parece que os únicos intervenientes com alguma sensatez são os dois líderes políticos máximos de um e outro lado e vale sempre a pena ser revisto.

Mas acontece, por vezes, que a realidade consegue ultrapassar a ficção mais delirante. E estamos neste momento a viver um momento de extrema gravidade e perigo extremo, dada a atitude de um líder político de um país possuidor de um enorme arsenal nuclear que decidiu usá-lo, para já, como arma psicológica de apoio à invasão de um país independente e anexação de territórios. Tudo o que Putin tem feito desde que em Fevereiro passado iniciou a invasão militar da Ucrânia faz lembrar as insanidades do filme de Kubrick. Os ditos «referendos» nos territórios ucranianos sob o domínio militar russo, condenados e considerados sem qualquer valor legal por quase todos os países do mundo e mesmo pela própria ONU fazem ainda lembrar as anexações de Hitler antes do eclodir da Segunda Guerra Mundial. As explosões submarinas dos gasodutos do Báltico são apenas mais um passo na guerra que Putin quer travar com todo o Ocidente cuja cultura liberal odeia, a começar pela Europa com as suas liberdades políticas, sociais e económicas. Tal como o general Jack D. Ripper se convenceu de que os «comunas» queriam destruir a América por dentro, o antigo chefe dos espiões soviéticos na Alemanha Oriental que hoje governa a Rússia está convencido de que os «decadentes liberais» do Ocidente não pretendem senão destruir a civilização que quer para o seu país e para o mundo. E, como se viu na semana passada, tem o apoio verdadeiramente inacreditável (ou se calhar, talvez não) do Patriarca Kirill de Moscovo, líder da Igreja Ortodoxa Russa, que exortou os russos a irem «corajosamente» para a guerra na Ucrânia, prometendo aos que morrerem que «entrarão no reino de Deus, garantindo a própria glória e vida eterna». O conselheiro Dr. Estranhoamor não diria melhor, enquanto certamente levantaria automaticamente o braço direito.


A cerimónia patética da passada sexta-feira da entrada de quatro províncias ucranianas na Federação Russa (ia dizer União Soviética, nem sei porquê) ultrapassou tudo o que Kubrick imaginou para o seu filme delirante e deverá constar nos anais da História ao lado da assinatura do inesquecível Pacto Molotov-Ribbentrop. Putin imagina-se um sucessor dos czares russos, mas é apenas mais um ditadorzeco que, em vez de trabalhar para conseguir desenvolvimento e bem-estar para os seus cidadãos, pretende ter um grande país que cresce pelo poderio militar e subjugação dos povos, os seus e os vizinhos. Terão de ser os russos a acabar de vez com esta loucura.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Outubro de 2022

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Realidade e contos de fadas

 


Pode parecer anacrónico, em pleno século XXI abordar a questão da Monarquia em Portugal mas a morte da Rainha Isabel II e toda a envolvência política e mediática que a envolveu justificam, ainda que de forma simples, alguma ponderação sobre o assunto. Deixo de lado as considerações sobre casamentos, divórcios, vestidos, fardas e jóias que enchem as páginas de revistas, jornais, mas que são supérfluas perante o essencial.

É interessante que, entre os meus amigos pessoais, haja defensores da monarquia com diferentes opções políticas, uns de esquerda e outros de direita. Significa isto que o que está em questão relativamente à monarquia não é o regime, dado que a democracia é garantida desde que as monarquias passaram a ser constitucionais. Também não é o desenvolvimento económico ou social que está em causa, bastando para tal recordar que países como a Noruega, a Suécia, os Países Baixos, a Espanha ou a Bélgica, para além do reino Unido, têm monarquias no cume dos seus sistemas políticos.

A Rainha Isabel II é uma personagem fascinante que representa boa parte do sec. XX, embora tenha vivido ainda mais de vinte anos neste século. A excepcional duração do seu reinado foi razão para que tenha convivido com quinze primeiros-ministros britânicos desde Winston Churchill até à actual Liz Truss que ainda ninguém conhece, para além dos inúmeros líderes dos diversos países. No que a Portugal diz respeito, conheceu desde Salazar e Craveiro Lopes até Ramalho Eanes e Marcelo Rebelo de Sousa, só para dar o nosso exemplo.

Um dos aspectos que nas últimas duas dezenas de anos mais foram discutidos no exercício soberano de Isabel II foi o da sua possível resignação a favor do filho Carlos, dada a idade da Rainha, algo que nunca fez nem podia fazer. Sem que na maior parte dos casos sequer se adivinhasse, estava-se na realidade a tocar num ponto essencial da vida de Isabel II como Rainha, mas também da própria essência da Monarquia.

Recordo que Isabel II nasceu em 1926, mas não para ser rainha. Só o foi porque em 1936 o seu tio Rei Eduardo VIII abdicou, nas circunstâncias que todos conhecemos, a favor do seu irmão que se tornou o Rei Jorge VI. Era este rei o pai de Isabel que assim, lhe veio a suceder como Isabel II pela sua morte ocorrida em 1953.

Tudo o que rodeou esta situação que levou à sua entronização em 2 de Junho de 1953 calou profundamente na sua formação pessoal e carácter que a levaram ao famoso juramento de servir o povo britânico para sempre, o que impediu que algum dia pensasse sequer em abdicar do que considerava ser o seu dever inalienável.


Mas houve ainda outra situação desconhecida de grande parte das pessoas que também terá marcado Isabel II para toda a sua vida como rainha, dado o seu simbolismo. Em momento imediatamente anterior à coroação pública, através da colocação na sua cabeça da coroa imperial de mais de um quilo de ouro e 2.868 diamantes, houve outra cerimónia levada a cabo longe da vista do público. Nessa cerimónia que vem desde os longínquos tempos medievais Isabel, sem as suas vestes reais, foi ungida com óleo sagrado, significando isso que seria rainha, não só pela herança da casa de Hanôver, mas por direito divino.

Chego assim ao ponto central da justificação da existência da Monarquia e, devo dizê-lo desde já, da razão de eu ser republicano. De facto, embora possa dizer ser hoje um leitor ávido de História, em particular da nossa rica de quase mil anos e tantos reis e rainhas de que sou admirador de uns e não tanto de outros, é a própria essência da Monarquia que aqui está em causa.

Aceito perfeitamente a existência de monarquias, mesmo nos dias de hoje, desde que seja essa a vontade expressa do povo, mas nunca por direito dinástico ou divino. E não é o facto de uma determinada personalidade nos merecer a maior admiração pela sua vida como rei ou rainha, como foi o caso de Isabel II, que ultrapassa a questão radical da razão de o ter sido por outra razão que não a escolha por quem deve ser o detentor da soberania: o povo constituído por todos, independentemente do seu nascimento, da sua riqueza ou mesmo da sua cultura. E, goste-se ou não, a realidade vai muito para além dos contos de fadas por muito apelativos que estes sejam.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Setembro de 2022

Imagens retiradas da internet