segunda-feira, 3 de julho de 2023

ADEUS, SIMÃO, ATÉ SEMPRE AMIGO FIEL

 

Eu sei que é difícil, para quem nunca teve um animal de estimação, perceber a relação que se pode estabelecer com esse animal, por vezes até considerada como ridícula. Não se trata aqui de teorizar sobre eventuais direitos dos animais, que nos dias de hoje muitos, entre os quais não me incluo, até defendem que deveriam ser constitucionais, mas de como um animal de estimação pode fazer parte da nossa vida e dela ser mesmo uma parte importante.


Numa esquina da vida encontrei um cão muito especial (todos o serão para alguém, claro) que me fez mudar a maneira como olho para os animais de estimação. A adaptação mútua não foi imediata mas, a partir de certa altura, a relação que se foi construindo entre nós era verdadeiramente notável. Claro que o facto de se tratar de um golden retriever, raça conhecida pela sua inteligência e grande capacidade afectiva, certamente ajudou. O seu olhar meigo, bem como a alegria com que partilhava os passeios pela rua compensava largamente aquilo que tantas vezes mais parecia disparates, como morder os tubérculos de plantas em vasos. Ele lá saberia porque o fazia, tal como comer a relva do jardim. Já pegar em meias ou chinelos velhos e ir para um canto roer os troféus tinha apenas graça. Mas era com grande carinho e cuidado que muitas vezes, apenas a madrugada ia a meio, metia o focinho entre a almofada e os lençóis para me acordar e pedir para lhe fazer umas festas ou mesmo levantar e ir até à rua. Aí era verdadeiramente um companheiro de brincadeira. Agradecia satisfeito todas as festas que os transeuntes lhe faziam cativados pelo seu aspecto simpático e grande tamanho. Mesmo crianças pequenas ficavam deliciadas por lhes deixar fazer festas e dar abraços sem nunca dar sinal de enfado.


A certa altura os anos começaram a pesar-lhe. Os passeios foram diminuindo de distância, até praticamente se reduzirem a sair para as suas necessidades e regressar. Também passou a não poder passar a noite no exterior porque sentia frio. Houve um momento em que passou a ter que ser medicado, dado que as costas lhe doíam e tinha notória dificuldade em levantar as patas traseiras ao acordar. Mas, depois de ajudado, ficava outra vez como novo e pronto para enfrentar o dia como sempre, adorado como companhia perfeita por toda a família. Muitas vezes, quando sentado na cadeira com o computador sobre os joelhos compunha estes textos ou outra coisa qualquer, o Simão vinha colocar o focinho ao lado do écran a espreitar o que eu estaria a fazer e só com o olhar afectuoso era capaz de transmitir o que queria.

Durante anos toda a vizinhança me acompanhava com um olhar sorridente quando passeava a cachorro pela rua, dando-me a impressão de que consideravam o cão como uma extensão do meu próprio ser. E, provavelmente, naqueles momentos não andariam longe da verdade, só que não saberia dizer quem seria o prolongamento de quem…

O Simão decidiu partir, resultado da idade avançada, mas não deixa triste quem com ele partilhou a vida, já que perduram as memórias felizes de tantos momentos de companheirismo, olhares de afecto e também de brincadeiras.

Sim, eu sei que haverá quem ache ridículo dedicar uma crónica a um cachorro, mas a esses sempre poderei lembrar Álvaro de Campos quando escrevia que «todas as cartas de amor são ridículas”.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Julho de 2023

Imagens do autor

segunda-feira, 26 de junho de 2023

A RESILIÊNCIA (REAL) DA SOCIEDADE PORTUGUESA

 


Temos assistido recentemente a fenómenos de alterações sociais que, por se darem de forma gradual e não instantânea como as revoluções, nem por isso deixam de ser profundas e de, mais cedo ou mais tarde, se manifestarem com uma força que não se imaginaria possível.

As políticas educativas dos últimos anos têm tido consequências à primeira vista imprevisíveis, dado que os seus responsáveis estão sempre a defender a escola pública. Na realidade, as lutas dos professores têm trazido à tona situações laborais insustentáveis pela sua profundidade e duração. Como consequência, a desmotivação dessa classe profissional, com um papel crucial em qualquer sociedade desenvolvida, é uma evidência e acarreta problemas graves no que verdadeiramente importa em qualquer sistema educativo, que é a formação dos alunos. A burocratização da função educativa, bem como a permanente desautorização dos professores diminuem-lhes gravemente a capacidade de ensino, transformando-os em funcionários de um sistema desumanizado permanentemente em conflito. Quem sofre mais são os alunos mais carenciados, que vêem o sistema ser cada vez menos uma escada de ascensão social, potenciando o crescimento das desigualdades, sempre injustas. O fim dos contratos de associação veio ajudar, eliminando a possibilidade de alunos com menos posses acederem a um ensino diferenciado e de qualidade. Só para dar um exemplo, aqui ao lado em Espanha, como em muitos outros países europeus, os contratos de associação mantêm-se, mesmo com governos muito à esquerda. Se havia exageros ou incumprimentos, isso resolvia-se com a Justiça, sem deitar a água fora com o bebé, puramente por motivos ideológicos. Todos sabemos dos defeitos dos rankings escolares que têm dificuldade em integrar os problemas sociais locais. Mas há uma evidência que ressalta deles e de que é impossível fugir, por mais defeitos que tenham: a variação ao longo dos últimos anos que consiste na descida sistemática e contínua das escolas públicas dos lugares cimeiros. Nas primeiras quarenta escolas não aparece uma única pública! Lembram-se de que há uns anos a Escola Secundária D. Maria aqui em Coimbra era sistematicamente uma das primeiras? Onde já vai esse tempo. Como resultado disto tudo, os colégios privados nascem e desenvolvem-se sem mãos a medir, com milhares de pais a fazerem sacrifícios enormes para poderem pagar as propinas, preocupados com o futuro dos seus filhos.


Tal como tem vindo a acontecer no Serviço Nacional de Saúde. Da falta de médicos de família às maternidades, passando pelos atrasos nas consultas e cirurgias, parece não haver maneira de resolver os problemas gravíssimos do SNS. E não é certamente por falta de dinheiro, mas por incompetência e incapacidade política de fazer reformas. Nomear uns gestores nacionais para o SNS pode resolver uns problemas pontuais e ir iludindo o inevitável, mas quem tem a responsabilidade última é o Governo. E não estou a esquecer as ilhas de excelência do SNS, que as tem, nem a importância e significado do SNS para os portugueses em geral. Mas o acesso rápido e universal à prestação dos serviços é essencial para a sua eficácia. Também no SNS se assiste à fuga por parte de quem tem possibilidade financeira para o fazer, mesmo com grandes sacrifícios; a crescente subscrição de seguros privados de saúde, que já se conta por vários milhões, bem como a proliferação de hospitais privados é a prova disso mesmo. E como é que se compreende que o Governo tenha acabado com Parcerias Publico Privadas que saíam mais baratas ao Estado e prestavam cuidados de saúde de mais qualidade do que acontece actualmente com gestão pública, como é publico e notório, por exemplo, em Braga e em Loures?

A pressão ideológica colocada pelo Governo sobre estas áreas de governação tem como efeito um reequilíbrio praticado pelos cidadãos que ao passarem para os serviços oferecidos pelos sectores privados, embora à sua própria custa, estão também a baixar a pressão sobre os serviços estatais. Até poderia ser positivo se isso significasse uma descida da despesa estatal, mas incompreensivelmente tal não acontece. O que faz dos portugueses dos cidadãos que mais despesa têm com cuidados de saúde na Europa. Mas a resiliência da nossa sociedade perante a pressão estatal é que se torna verdadeiramente impressionante.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 Junho 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 19 de junho de 2023

O insustentável peso da negação

 


Não foi certamente o acaso que determinou o insucesso das duas últimas sessões comemorativas que houve em Portugal, as mais importantes e significativas que temos na actualidade. Numa se comemora a própria existência de Portugal como país independente e noutra a fundação do regime democrático. Momentos que era suposto serem de júbilo e celebração colectiva transformaram-se em sinais de profunda tensão social e, pior, de denegação política da existência dessa mesma tensão. Em 25 de Abril, ao celebrarem-se os 49 anos do regime, vieram à tona incapacidades de aceitação da diferença que, em mistura com desrespeito pelo representante máximo do maior país que de nós saiu, o Brasil, levaram a que se a Assembleia da República se transformasse em palco de uma autêntica vergonha colectiva. No 10 de Junho, toda a festa e significado do local das celebrações ficaram escondidos por detrás de uma manifestação de professores que, ao destratarem na via pública o Primeiro Ministro em momento festivo, se diminuíram a si mesmos, enfraquecendo a própria luta reivindicativa que vêm mantendo há longos meses. Não se pense que esta minha visão constitui uma manifestação pessoal de “respeitinho bonito”, que não é de todo o caso. Lamentando que haja quem não perceba a diferença estre as diversas situações e circunstâncias saliento haver, no entanto, algo que une estes dois momentos, para além da má-educação evidenciada: a prova de que os extremos se unem em muito mais do que possa parecer à primeira vista, já que num se manifestou a extrema-direita e noutro a extrema-esquerda.

Mas estas manifestações evidenciam ainda uma insatisfação colectiva profunda que os extremistas aproveitam para os seus intentos imediatos, enquanto os responsáveis políticos moderados assobiam para o lado, deixando o terreno cada vez mais aberto precisamente para os extremistas.

Os momentos de celebração colectiva, ao contrário de manifestações de auto-satisfação, bem poderiam servir para se fazer uma avaliação do que tem sido feito nas últimas décadas, de bem mas também de mal feito. Até porque as sondagens indicam que os portugueses estão a tomar consciência de muitas coisas. Como o Expresso indicava há uma semana, 90% dos portugueses estão insatisfeitos com a distribuição de riqueza, 91% com o nível de impostos sobre o rendimento, 74% com o SNS, 68% com a educação pública e 87% com o combate à corrupção. Estes apenas alguns dos indicadores da insatisfação dos portugueses. Terá sido um balde de água gelada para os apoiantes do actual Governo que se afadigam a tentar mostrar que Portugal é um autêntico oásis na União Europeia.


A realidade é que o ordenado mínimo se aproxima cada vez mais do ordenado médio dos portugueses, com o que isso significa de destruição das classes médias cada vez mais proletarizadas. A saída de jovens portugueses com formação superior à procura de condições de vida de acordo com os seus sonhos e capacidades lá fora é cada vez mais uma realidade, enquanto um grande número permanece em casa dos pais até aos 33 anos, quando a média europeia é de 26. Não nos podemos admirar com a ocupação do espaço público de forma ostensiva por parte dos extremistas, sejam de esquerda como na Régua, ou de direita, como na Assembleia da República. 

É verdadeiramente aflitivo que, precisamente numa altura em que as transferências de fundos europeus estão a ser gigantescas como nunca, o nosso crescimento nos últimos 20 anos tenha sido, em média, de 0,55% ao ano. Isto nos últimos vinte anos!

Temos de mudar de caminho. Em nome do futuro de filhos e netos.

Infelizmente, não vai ser fácil. Escondem-se os políticos do sistema, do PS e do PSD em estado de negação. Uns por prosseguirem com políticas corruptas e extractivas que levam paulatinamente, mas seguramente, o país para o lugar de mais pobre de toda a União Europeia. Outros porque, ou não têm coragem para o fazer, ou porque nem vêem necessidade de propor uma alternativa evidente, se apresentam apenas como mais competentes para fazer o mesmo, apenas melhor, enquanto aguardam pela saída de quem está.

Toda a organização política tem de ser repensada e verdadeiramente descentralizada. Os impostos sobre o rendimento e o trabalho têm de diminuir. Tal como sobre as empresas. A melhoria da rentabilidade da economia tem de passar a ser um desígnio nacional; não nos podemos tornar em empregados de café e de hotelaria dos europeus ricos, com todo o respeito por essas profissões.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de  Junho de 2023

Imagens recolhidas na internet