segunda-feira, 4 de setembro de 2023

O “cronicador”


O exercício da actividade de cronista nos jornais consiste basicamente em comunicar com os concidadãos através da palavra escrita. Quem o faz poderá, portanto, ser designado como um comunicador específico não me parecendo abusivo apelidá-lo de cronicador.

As crónicas têm muito frequentemente o objectivo mais ou menos claro de influenciar os leitores nesta ou naquela direcção seja em política seja em qualquer outra área social. Aproveito para esclarecer que ao escrever “leitores” não estou a menosprezar as mulheres que me leem pela simples razão de que, em português, aquele termo abrange homens e mulheres, pela mesma razão pela qual também não se diz “portuguesos” e portuguesas e sim simplesmente portugueses”; aqui o respeito a ter é mesmo pela língua em que somos, sendo para mim incompreensível que responsáveis políticos aos mais altos níveis embarquem em tal confusão; claro que erros qualquer um os pode ter e, pessoalmente, já nestas páginas tive alguns, do que aliás me penitencio junto de todos os leitores.

Mas a escrita regular de crónicas pode ter em vista algo de muito diferente. Desde partilhar conhecimentos que na óptica do autor não deverão ficar fechados em qualquer academia, mas também de experiências vivenciadas, para além de comentários e críticas sobre a realidade que vivemos. Desta forma se estabelece uma ligação entre autor e leitores, que habitualmente permanece algo submersa surgindo, no entanto, à superfície em certas situações muitas vezes imprevistas.

No meu caso, já são mais de vinte anos de crónicas, que tiveram início num artigo publicado no saudoso “Comércio do Porto” ainda nos anos oitenta. A partir daí surgiram as publicações no Diário de Coimbra, jornal a que decidi manter-me fiel apesar de outros convites, mantendo a actual série semanal às segundas-feiras já há mais de dezassete anos.

 Escrever crónicas torna-se facilmente um hábito, possibilitando a abordagem dos mais diversos temas e até ensaios pontuais de estilos diferentes de escrita. Mantenho, contudo, a recusa do chamado novo acordo ortográfico que considero estúpido, ineficiente perante os objectivos que perseguia e mesmo desvirtuador da língua portuguesa.

Claro que, à medida que as crónicas se vão sucedendo, o mesmo sucede aos anos que passam com uma velocidade que não se imagina quando jovem. Em consequência, também a visão sobre o mundo vai evoluindo, o que se reflecte nos escritos. É verdade que noto um acréscimo de irritabilidade perante a mentira, a incompetência e completa irresponsabilidade de figuras públicas a quem se deveria aplicar o ditado de “não suba o sapateiro além da chinela”. Mas em geral o olhar sobre o que nos rodeia tornou-se mais suave e até meigo perante os desfavorecidos e fracos em geral, sem falar do carinho todo ele especial pelos netos. E as amizades! Algo que para todos nós imagino que tenha sido muito importante na juventude, os amigos, regressa com uma força inusitada. Libertos que nos encontramos dos horários laborais, voltamos a ter o prazer de conversar sobre tudo e mais alguma coisa, sem preocupações nem cuidados com o que se diz. Passar um dia de semana com velhas amizades com quem há anos não convivia desta forma como me sucedeu na semana passada não tem preço. Às vezes parece mesmo que os astros fazem por se alinhar.

E acabo por reconhecer um certo espírito desculpabilizante perante as afirmações de muitos daqueles que acima referi e que têm responsabilidades a nível colectivo, por terem sido escolhidos democraticamente: afinal eles são fruto da sociedade construída pela minha própria geração e, provavelmente, a mais não serão obrigados.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Setembro 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Os portugueses e a saúde


António Arnaut considerava o Serviço Nacional de Saúde como sendo “a trave mestra da democracia”. E tinha evidentemente razão mal andando aqueles que de forma, para mim incompreensível, tantas vezes manifestam desrespeito quer pelo SNS, quer pelo que foi o responsável político pela Lei do Serviço Nacional de Saúde aprovada em 15 de Setembro de 1979. Não esquecendo Mário Mendes que tecnicamente lhe deu forma e conteúdo. Também mal andou então a direita, em particular o PSD que, por razões de pormenor, não lhe deu o seu aval, não sendo capaz de distinguir o essencial do assessório ficando para sempre com o ónus dessa opção política. Erro que logo depois foi ultrapassado, durante a governação da AD e do PSD em maioria absoluta, participando de forma decisiva na construção  e desenvolvimento do SNS. Recordo apenas a criação das carreiras de enfermagem, médicas e das Administrações Regionais de Saúde, por exemplo, a que se adicionam os passos decisivos na Saúde Materno-Infantil.

O SNS, garantindo cuidados de saúde de qualidade a todos os portugueses independentemente da sua condição social ou económica, é fundamental para a segurança dos cidadãos e deve ser não só aceite como acarinhado pelas diversas forças políticas, seja qual for a sua orientação política.

Mas o nosso SNS está, obviamente, doente. Não interessa para aqui quem é o culpado disto ou daquilo, já que dizendo respeito a todos os portugueses, é matéria que deveria ser objecto de consenso e não de querelas ideológicas. A realidade com as suas consequências está infelizmente à vista de todos não sendo possível iludi-la por mais tempo.

O que se passou na semana passada em que um cidadão com noventa e três anos ficou seis horas numa maca dentro do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, à espera de que o socorressem até morrer é bem a prova disso. Aos mais diversos níveis. Vou descartar a hipótese de ter sido preterido por doentes mais novos que ainda são contribuintes para o Estado a nível de segurança social em vez de beneficiários líquidos como ele era porque penso que ainda não chegámos a esse ponto. Por enquanto. O serviço de urgência do hospital estaria desfalcado a nível de pessoal, fosse médico da urgência ou da cirurgia. Não haveria também disponibilidade de transporte para outro hospital por parte de quem o deveria fazer. Tudo questões que se percebe não serem exclusivas daquele hospital, mas generalizadas por todo o país.

Acontece que aquele hospital é actualmente gerido pelo Estado, quando antes o era por privados em regime de PPP. E esta situação nunca aconteceria então, desde logo porque o Estado não o permitiria, o que deveria fazer pensar duas vezes quem ideologicamente se preocupa mais com quem presta os serviços de saúde pública do que com os respectivos utentes.

O grande crescimento da procura de serviços de saúde não foi acompanhado por uma correspondente adaptação do SNS, o que se veio a reflectir na falta de resposta adequada (de qualidade e em tempo útil) pelo que a confiança pública desceu. Em consequência, os doentes têm-se virado para a oferta privada, o que se vê no elevado número de seguros de saúde subscritos e na despesa com serviços de saúde privados que é já uma das maiores da Europa, situação tão mais grave quanto os nossos ordenados são dos mais baixos também na Europa.  Nos últimos dias soube-se também da transferência de partos do SNS para as maternidades privadas com a mesma justificação, falta de confiança, situação incompreensível para quem se lembra do que se verificava há alguns anos, que era exactamente o oposto. Como se se tratasse de uma pescadinha de rabo na boca, outra consequência é o abandono do SNS por elevado número de médicos e enfermeiros. A resposta tem sido contratar empresas que fornecem horas de médicos no que constitui uma total inversão do que deve acontecer em cuidados de saúde, pela mercantilização de uma das actividades mais dignas da Humanidade.

A reforma do SNS é urgentíssima e nunca será constituída por uma soma de remendos pontuais ditados pela necessidade de correr a resolver situações urgentes. Exige capacidade de diálogo e vontade política de obter compromissos, para além de competência. O SNS é demasiado valioso para os portugueses para ser destruído à vista de todos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Agosto de 2023

Imagens retiradas da internet

 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Aprender com a História

 


Que aprendemos muito pouco com a História é uma verdade quotidianamente provada, nas mais diversas áreas, incluindo a Guerra.

Quando o Marechal Massena iniciou a terceira Invasão Francesa a Portugal fez publicar uma proclamação em que afirmava: “Não entrámos no vosso território como conquistadores. Não viemos para vos dar guerra, mas para combater aqueles que vos obrigam a guerrear”. Assim começava a mais destrutiva das invasões ordenadas por Napoleão. Com uma justificação, ou desculpa conforme lhe quisermos chamar, gasta de tanto uso mas ainda utilizada nos nossos dias. Basicamente foram as palavras de Putin em Fevereiro do ano passado quando mandou invadir militarmente um país soberano, a Ucrânia.

A proclamação de Massena espelhava uma preocupação pela resistência que os civis portugueses pudessem opor à invasão, cujo objectivo era tomar Lisboa e instalar no país um regime dominado por Napoleão à semelhança do já sucedido noutras paragens. Mas pretendia também usar alguma revolta popular contra a atitude dos aliados ingleses, que mais faziam Portugal parecer um protectorado inglês. A proclamação surgia necessária depois de uma surtida pelo território do marquês de Alorna, um português ao serviço dos franceses, que verificou por si mesmo a revolta dos camponeses contra os franceses obedecendo, ainda que contra vontade, às directivas de Wellington que impunham a destruição de tudo o que pudesse interessar aos franceses. O que era importante para Massena, já que naquele tempo os exércitos sobreviviam daquilo que encontravam e pilhavam nos locais por onde passavam.

Foi em Agosto de 1810 que os exércitos franceses de Massena cercaram a praça-forte de Almeida, depois de tomada Ciudad Rodrigo. Ao fim da tarde do dia 27 desse mês uma terrível explosão do paiol de pólvora de Almeida surpreendeu sitiados e sitiantes, matando cerca de 600 soldados de artilharia e 200 artilheiros, bem como cerca de 500 civis. Massena tinha o caminho livre para entrar em força em Portugal, apenas sendo detido nas Linhas de Torres, já perto de Lisboa, embora sofresse percalços pelo caminho como aconteceu no Bussaco, consequência de más opções suas.

A terceira invasão foi terrível em termos de perdas de vidas, mas também de destruição de terras e património. Depois da retirada dos franceses em Abril de 1811 pouco ou nada restava do Portugal anterior, exaurido e faminto, com hordas de banditismo a dominar o interior do país. As elites que anteriormente governavam o país tinham praticamente desaparecido, deixando lugar a que novas surgissem, assim abrindo caminho ao liberalismo, mas essa já é outra história.


 Neste mês de Agosto de 2023 ao prestar tributo aos portugueses de há 213 anos que resistiram contra o invasor com tanta bravia mas sobretudo sofrimento não podemos deixar de estabelecer comparações com a invasão da Ucrânia pela Rússia e não só pelas razões apresentadas, mas também pela destruição sistemática de um país. As armas podem ser diferentes, mas a relação de dimensões do atacante e do invadido é semelhante. Tal como o é a completa falta de consideração para com os civis apanhados no caminho dos exércitos, com massacres perpetrados contra homens, mulheres e crianças sem culpa nenhuma do que acontece. E como o é a resistência patriótica de um povo contra quem o invade, contra todas as probabilidades e apesar da traição de tantos que pertencendo a elites privilegiadas pensam apenas nos seus interesses imediatos.

Se Putin e os seus oligarcas de serviço se dedicassem por uma vez que fosse a estudar os clássicos ocidentais em vez de insultarem sistematicamente o nosso modo de vida e os valores liberais, poderiam aprender alguma coisa com Aldous Huxley quando escreveu: "(…) Que os homens não aprendem muito com as lições da História é a mais importante de todas as lições que a História tem para ensinar (…)”. Mas não tenho essa esperança.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Agosto de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

EXTRACÇÃO OU CRESCIMENTO

 


Seja qual for a perspectiva pela qual se observe a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, não é possível deixar de a considerar como um sucesso completo. Claro que se tratou de um encontro de carácter religioso organizado pela Igreja Católica e esse será o primeiro olhar a ter. Juntar cerca de um milhão e meio de jovens numa iniciativa católica nos dias de hoje é, só por si algo de excepcional. Mais importante ainda, a mensagem transmitida pelo Papa que, a ser seguida pelos participantes só poderá ser muito positivo para o mundo. Mas a forma como decorreram toda a JMJ, desde o comportamento dos jovens até à organização em si foi igualmente exemplar. Outro aspecto muito importante teve a teve com as instalações e as obras que lhe estiveram associadas. Em particular, o enorme espaço ribeirinho junto à foz do Trancão, bem perto da Parque Expo, que se encontrava até agora ainda por recuperar para a Cidade. Em muito pouco tempo as obras feitas proporcionaram a possibilidade de juntar um milhão e meio de pessoas num mesmo local. Toda aquela zona foi beneficiada, ficando agora ligada a um percurso ao longo do rio Tejo com dezenas de quilómetros de extensão, possibilitando ainda a realização futura das mais variadas realizações colectivas, de que a próxima Semana Académica de Lisboa será só um exemplo. Trata-se de mais um exemplo de como os portugueses conseguem superar dificuldades quando a tarefa é urgente, por mais volumosa e complexa que seja.

Tal como Portugal foi capaz de organizar a Expo 98, projecto de grande dimensão que, para além de construir o certame, obrigou a recuperar uma área considerável que se encontrava num estado de degradação e poluição incríveis. Foi possível fazer tudo em tempo e horas e a Cidade beneficiou largamente dessa organização.

Assim como foi possível, a um nível mais reduzido, por se tratar de projectos mais pequenos e dispersos pelo país, levar a cabo os POLIS que foram executados e bastante beneficiaram as cidades que os receberam. Coimbra é bem o exemplo disso com a construção do Parque Verde que finalmente possibilitou uma ligação dos conimbricenses ao Mondego.

Ou os estádios de futebol do Euro2004. Independentemente da bondade da decisão, que não é isso que está aqui em causa, fomos capazes de concluir tudo em tempo, tarefa que não foi nada fácil.

Estes exemplos mostram como temos capacidade para realizar projectos bem definidos no tempo, por maior complexidade de que se revistam.


Algo que contrasta de forma chocante com a incapacidade de levar a cabo tarefas prolongadas no tempo que exijam capacidade de organização, mas também persistência e esforço continuado. Precisamente o que demonstrámos ao mundo durante quase todo o sec. XV. Foram oitenta e poucos anos de organização, capacidade tecnológica, método, aplicação de ciência e essencialmente persistência no foco. Depois tivemos a dominação filipina mas, quando recuperámos a independência com a dinastia dos Bragança, abraçámos o sistema extrativo vivendo das riquezas vindas do Brasil e de África.

Actualmente o sistema político tornou-se novamente extractivo, no que se tornou num verdadeiro vício, conjugando a maior carga fiscal de sempre com a vinda de um milhão de euros de fundos europeus por hora. Será mesmo essa a razão para a total incapacidade para reformar tudo aquilo que é necessário e urgente reformar, desde a Educação à Saúde, da Justiça à Segurança Social, das forças de segurança às Forças Armadas. Tudo o que exige competência, mas sobretudo vontade política e perseverança que promovem crescimento sustentado. Algo muito diferente do nosso famoso “desenrascanço” que, à última hora, nos permite organizar feiras, campeonatos ou encontros e festivais os quais, por mais apelativos e importantes que sejam naquele momento em que são promovidos, rapidamente passam para a categoria de memórias.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 de Agosto de 2023

Imagens recolhidas na internet