segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Tapar as vergonhas

A Europa do Século XXI é herdeira de muitos séculos de desenvolvimento social, económico e cultural de que, nós europeus, nos podemos muito legitimamente orgulhar. Esse caminho foi longo, teve altos e baixos, sucessos e tragédias lamentáveis, mas permitiu construir um legado cultural distinto até do resto do Ocidente. Desde a Grécia clássica e o Império Romano, a Europa foi-se construindo a si mesma, por dentro, evidentemente sujeita a invasões militares e culturais que também a foram influenciando, mas moldando-se sempre a si mesma de forma notável. Depois das “invasões bárbaras” e o desmantelamento do império romano do ocidente, o cristianismo foi durante séculos cimentando uma unidade social e religiosa que, apesar da Inquisição e da mistura perniciosa entre Estado e Igreja, veio a culminar num florescimento notável no fim da Idade Média e o Renascimento. O crescimento notável da Europa levou-a a expandir-se e a abrir-se para fora e ao resto do Mundo, no que os portugueses, que estavam estrategicamente localizados precisamente na extremidade ocidental do continente, foram cruciais para que tal acontecesse.

A Europa viu surgir o Iluminismo e o desenvolvimento dos ideais democráticos. A Revolução Francesa foi um marco na História Europeia, colocando os seus ideais da Liberdade, Igualdade e Fraternidade no centro das preocupações dos europeus.
Foi na Europa que tiveram origem as grandes ideologias políticas que avassalaram o mundo durante todo o Século XX, dando origem a algumas das maiores hecatombes humanitárias da História. Mas foi também na Europa que surgiram os movimentos sociais que levaram à libertação da Mulher e à afirmação dos movimentos e sentires da juventude que vieram trazer novas vivências e maneiras de estar na sociedade, com mais liberdade e respeito pelo Outro.
Tudo isto fez a Europa e a sua cultura. Dos cinco elementos que George Steiner aponta para caracterizar a Europa, três deles serão pacíficos: os cafés e as conversas que proporcionam, a geografia não muito extensa, calma e humanizada e ainda a força da História/passado sobre o presente. Os dois outros elementos identitários indicados por Steiner são um pouco mais difíceis de compreender. No quarto, a Europa surge como resultado da fusão das culturas Judaica e Helénica das quais se pode não gostar e que até são à partida antagónicas, mas sendo a realidade o que é, não se pode fugir dela. Já o quinto elemento tem a ver com a consciência de que a civilização europeia pode estar a chegar ao seu fim, perante o surgimento e desenvolvimento da globalização.
Infelizmente, o que sucedeu em Roma na semana passada aquando da visita à Europa do presidente do Irão na sequência do fim das sanções internacionais a este país parece ter tudo a ver com este último elemento da identidade europeia formulado por Steiner. O local escolhido pelo governo italiano para o encontro entre o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi e o presidente iraniano Hassan Rouhani foi o Museu Capitolino em Roma, um dos locais mais representativos da cultura clássica romana. 
No entanto, supostamente para evitar ferir susceptibilidades do presidente iraniano que recorda-se, é o líder religioso da teocracia que governa o país, todas as esculturas com nus foram tapadas com grandes painéis brancos, tendo a foto oficial do encontro entre os dois políticos sido tirada junto da estátua equestre do imperador Marco Aurélio.

Os Museus Capitolinos parecem ser uma escolha excelente para um encontro político de significado, como símbolo da cultura italiana e europeia, localizando-se no cimo da colina do Capitólio, à volta de uma praça desenhada por Miguel Ângelo, no século XVI. No entanto, em vez de nos orgulharmos da nossa História e Cultura, parece que nós europeus chegámos a um ponto em que nos envergonhamos delas, cobrindo e escondendo as manifestações artísticas mais representativas da grandeza do império romano de há mais de dois mil anos, como se fossem pecaminosas. De caminho, perdemos a nossa identidade e, estou certo, o respeito dos outros. Se nos envergonharmos dos nossos Valores, da nossa História e da nossa Cultura, resultado de milhares de anos de evolução social, económica e também, ou sobretudo, cultural, perderemos tudo o que alcançámos, começando pela Liberdade e a seguir sabe-se lá o quê.



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