segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

ESCREVER E REESCREVER A HISTORIA

Ai dos vencidos, terá exclamado Breno quando fez aumentar o resgate a pagar pela libertação de Roma atirando a sua pesada espada para cima da balança. A História é de facto muitas vezes favorável aos vencedores, já que escrita por eles próprios, pelos seus apoiantes ou apenas por aqueles a quem dá jeito estar com quem ganha o poder. Terá sido o caso do próprio Shakespeare quando estabeleceu a “verdade” para a História acerca de Ricardo III, último Rei inglês da família dos Plantagenetas, morto a lutar em plena batalha de Bosworth no longínquo dia 22 de Agosto 1485. Era do interesse dos Tudor, nova família reinante, que Ricardo III fosse recordado como um monstro, ideia que ainda hoje prevalece.
 A recente descoberta do esqueleto de Ricardo III não trará novidades à História. Confirma que não era corcunda e que padecia, isso sim, de escoliose acentuada surgida teria uns dez anos de idade, e elimina a sugestão de Shakespeare de que seria incapaz de mexer um dos seus braços. Acima de tudo, a análise dos ossos traz à luz do dia a forma como morreu: o seu corpo sofreu inúmeros golpes, tendo provavelmente falecido de um grande golpe na cabeça. Mesmo depois de morto foi trespassado por diversas vezes, o que demonstra, não só a violência dos combates pessoais de então, mas também a raiva que lhe tinham os vencedores e, em particular, os que o atraiçoaram em plena batalha. As crónicas tentaram pintar as cores desse Rei apenas com tons escuros, eliminando as facetas favoráveis que as teve, e não terão sido poucas. Foi leal a seu irmão o Rei Eduardo IV enquanto este viveu e era um homem culto, respeitador dos direitos dos mais pobres e grande defensor da liberdade de imprensa, então no seu início. Ele próprio era um leitor interessado, escrevendo apontamentos pessoais nos livros que lia.
A ciência de hoje permitiu afirmar que aqueles são efectivamente os ossos de Ricardo III, o que ainda há poucos anos seria impossível. Mas a identificação positiva foi também um acaso da História. De facto, foi feita através da análise do DNA mitocôndrico que só é transmitido por via feminina. Os investigadores encontraram duas pessoas descendentes de uma irmã do velho rei que confirmaram ambas o DNA, mas nenhuma delas é mulher com filhas, pelo que eram as últimas hipóteses de confirmar a identificação.
Ricardo III foi certamente um homem capaz das maiores barbaridades e violências, como era aliás habitual no seu tempo. Mas sabe-se hoje que a imagem física que Shakespeare deu dele, tendo escrito mais de cem anos após a morte do Rei, não correspondia à realidade. O grande dramaturgo escreveu que a fealdade do seu aspecto reflectia a maldade da sua alma, isto é, a aparência seria reflexo da personalidade.
A descoberta agora feita vem pelo menos destruir este mito, já que se o aspecto exterior não era de facto como Shakespeare o descreveu, a conclusão sobre a personalidade poderia estar também errada. Mas mostra ainda outra coisa: mostra de facto como muitas vezes os intelectuais, ao mais alto nível, são capazes de utilizar as suas capacidades criativas para os motivos menos nobres. E ensina-nos ainda outra coisa: nunca se pense que a História está escrita em definitivo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Fevereiro de 3013

Sem comentários: