Esta é a crónica que eu desejaria
nunca ter de escrever. Como quem costuma ler estas linhas sabe, considero-me um
Beirão, antes de qualquer outra coisa. As minhas raízes estão na Sertã e na Aldeia
de S. Francisco de Assis, bem perto da Pampilhosa da Serra. O que significa algum
conhecimento daquela zona e sobretudo, uma grande proximidade afectiva. Costumo
dizer que quando ando por lá e sinto o cheiro a carqueja e esteva é que me considero
verdadeiramente em casa.
Por essa razão fiquei e continuo
chocado com os acontecimentos destes dias em que uma tragédia sem nome se
abateu sobre aqueles beirões que vivem onde querem, muitas vezes com
sacrifícios que os citadinos não compreendem e que pagam os seus impostos ao
Estado como toda a gente de bem, tendo direito a serem considerados como
cidadãos por inteiro, começando pela sua segurança. E não foi isso que
aconteceu, tendo morrido de forma incompreensível sessenta e quatro pessoas e
ficado feridas mais de duzentas, assim por extenso, porque as pessoas não são
números.
De tudo o que se viu, ouviu e
leu, há uma evidência que não é possível esconder nem podemos ignorar, por mais
areia que nos atirem para os olhos, com as eternas discussões sobre a origem do
incêndio, seja um raio de trovoada, seja mão criminosa, o que não altera em
nada o que se seguiu. E o que é indiscutível é que aconteceu a mais completa
desorganização que imaginar se possa numa situação de calamidade. E essa
desorganização tem, evidentemente, causas que não têm a ver com política
florestal e questões de ordenamento do território. Isso é outro assunto.
A descoordenação, que mais se
pareceu com um caos em que tudo o que podia correr mal correu mal, para além da
notória incapacidade organizacional da própria Protecção Civil, teve a ver
primariamente com a falta de comunicações entre os Bombeiros, GNR e Protecção
Civil. Quando não existem comunicações entre comando central, comandos locais e
forças distribuídas no terreno não há qualquer possibilidade de coordenação.
É por isso que perguntar porque é
que se fechou o IC8 e se mantiveram abertas estradas como a 236-1 é uma
pergunta descabida, face à situação de completa falta de informação por parte
dos agentes no terreno. Essa informação está a cargo de um sistema de
comunicações chamado SIRESP (sistema Integrado das Redes de Emergência e
Segurança de Portugal) que, a exemplo do sucedido em várias outras situações de
emergência anteriores, voltou a falhar. E não funcionou durante uma catorze
horas, deixando comando e operacionais sem contacto uns com os outros. Quando
se repuseram as comunicações na EN 236-1 já jaziam queimadas 47 pessoas. Falta
dizer que o SIRESP custou ao Estado português quase 500 milhões de euros.
O primeiro-ministro fez saber,
depois do desastre, que tinha feito várias perguntas aos serviços oficiais,
para saber das razões do sucedido. Lamento dizê-lo, mas como alguém já disse, o
papel de um primeiro-ministro não é fazer perguntas publicamente. O
primeiro-ministro deve dar respostas aos portugueses. Pode e deve perguntar aos
seus ministros que tutelam os diversos serviços oficiais envolvidos sobre as
razões do sucedido, mas não pode colocar-se de fora como se não tivesse nada a
ver com o caso e não fosse o primeiro responsável por tudo. Ao contrário do que
tenho lido por aí, exigir responsabilidades a quem governa, principalmente
perante uma tragédia que, pelo menos em grande parte podia e devia ter sido
evitada, não é desrespeitar os mortos. É precisamente o contrário. E é por ser
um português beirão, tal como muitos dos mortos neste incêndio, que não posso calar
a imensa tristeza com o sucedido, mas também a revolta que advém de perceber
que as nossas Beiras são tratadas como se fossem um país de segunda categoria
sendo, essa sim, a razão longínqua do sucedido.
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