Há momentos em que a actualidade se nos impõe de
uma forma tão impressiva, que não podemos fugir dela, por muito que
desejássemos que a realidade da nossa sociedade de hoje fosse diferente.
Felizmente, a corrupção é vista pela esmagadora maioria
dos cidadãos como algo de errado, ainda que muitas pessoas não se apercebam do
seu profundo significado e encontrem até motivos para a sua não reprovação
completa ou mesmo desculpabilização. Não vivemos numa sociedade em que o
“bakshish” seja norma, mas há muitos afloramentos de atitudes que não andarão
muito longe. Por exemplo, todos conhecemos casos de políticos, da esquerda à
direita, que transitam entre os ministérios e as grandes empresas com o maior
dos à-vontades, demonstrando que aquilo que se dizia ser próprio de um regime
antidemocrático se verifica também em democracia, isto é, “o que interessa não
é ser ministro, é ter sido ministro”.
Por estes dias um caso de corrupção, mais
propriamente por enquanto, de suspeita de corrupção, atingiu em pleno o cerne do
último reduto da defesa da sociedade como um todo colectivo e dos cidadãos a
nível individual, que é a Justiça. Dois juízes desembargadores da Relação de
Lisboa, um homem e uma mulher, foram constituídos arguidos por suspeita de
crimes relacionados com recebimento de dinheiro em troca de decisões judiciais
favoráveis. O caso atinge tais proporções que o Conselho Superior da
Magistratura suspendeu-os por entender que, e não é um qualquer cidadão mais
revoltado que o escreve, “em ambos os
casos, indicia-se, pois, uma muito grave, dolosa e reiterada violação dos
deveres profissionais a que se encontram adstritos os magistrados judiciais,
suscetível de se repercutir na sua vida pública de forma incompatível com a
credibilidade, prestígio e dignidade indispensáveis ao respetivo exercício
funcional”.
Já tínhamos um antigo Primeiro-ministro acusado de
corrupção a aguardar julgamento, já tivemos antigos ministros condenados,
banqueiros e gestores de grandes empresas uns condenados e outros à espera de julgamento
e por aí fora, agora temos juízes desembargadores também acusados de corrupção.
Este caso dos juízes desembargadores arguidos por
suspeita de corrupção vem juntar-se a esses casos de grande notoriedade dos
últimos anos que, apesar de tudo, são a prova de que a Justiça é o grande
garante do primado da Lei e que, embora seja um lugar comum dizê-lo, funciona.
E é precisamente quando a Justiça funciona
colocando em causa os mais poderosos, seja pelo dinheiro, seja pela relevância
das suas funções como políticos ou juízes, que vemos imediatamente um exército
bem treinado saltar para a comunicação social a colocar em causa precisamente
esse funcionamento.
Desde meados da semana passada que assistimos a
especialistas em todas as televisões e nas páginas dos jornais a clamar contra
a violação do segredo de justiça e contra uma suposta judicialização da
política ou a denunciar, pasme-se, a “agenda da PGR”. Quem estiver distraído,
poderá mesmo ser levado a pensar que os arguidos são vítimas e não suspeitos de
serem criminosos e que a Democracia poderá estar a ser posta em causa, quando é
ao contrário. A comunicação social é acusada dos piores crimes por divulgar
informação sobre os processos e não os deixar ficar na sombra, enquanto
curiosamente se louvam filmes como “The Post” ou “Os Homens do Presidente” que
mais não são do que símbolos da liberdade de imprensa contra os mais poderosos.
A corrupção é algo intolerável, que deve ser
combatido por razões éticas mas também por questões de justiça social. Os actos
de corrupção constituem um saque ao bem comum, com custos para toda a
sociedade. São um imposto escondido, que todos nós acabamos por pagar, para
benefício de uns poucos. A sociedade tem vindo, e bem, a criar mecanismos de
defesa contra a corrupção, como acontece com a obrigatoriedade da existência de
um “Plano de
Gestão de Riscos de Corrupção e Infracções Conexas” em todos organismos públicos, incluindo Empresas Públicas. Mas quando são
precisamente responsáveis de topo dessas instituições a resolver usar o seu
poder para extorquir dinheiro para as suas contas pessoais, no fim são apenas
as instâncias judiciais que têm capacidade para lhes suster o passo e os
castigar. Façamos votos para que a Justiça portuguesa continue, de forma
independente e cega aos privilégios, a defender a sociedade deste roubo social
que é a corrupção.
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