segunda-feira, 26 de março de 2018

INCÊNDIOS E RESPONSABILIDADES



Os portugueses não estavam habituados a que a verdade lhes entrasse pela casa dentro como aconteceu com os relatórios das Comissões Independentes criadas pela Assembleia da República sobre os incêndios de Junho e Outubro de 2017. Na verdade, entre a defesa de interesses partidários mesquinhos e a auto-defesa das estruturas estatais e respectivo funcionalismo, a dureza da realidade é quase sempre amaciada e transformada de forma a que não seja verdadeiramente possível encontrar responsabilidades. Quando estas apesar de tudo têm que surgir, encontram-se processos de responsabilizar algum desgraçado funcionário menor para arcar com elas.
É por isso uma surpresa que nos surja perante os olhos um relatório como o produzido pela Segunda Comissão Técnica Independente sobre os incêndios de Outubro passado, agora apresentado.
A primeira informação a reter é algo de que já havia uma noção generalizada e tem a ver com a dimensão dos fogos de Outubro; de acordo com o Relatório, este incêndio foi o “maior registado na Europa até ao momento e o maior do mundo em 2017, com uma média de 10 mil hectares ardidos por hora entre as 16:00 do dia 15 de Outubro e as 05:00 do dia 16”. Para isto contribuíram vários factores meteorológicos dominados pela passagem do furacão “Ophelia”, situação devidamente prevista com antecedência pelo IPMA.
Mas o Relatório aponta outras causas para que estes incêndios viessem a ter as trágicas consequências que dá a conhecer: 48 vidas humanas perdidas, 241 mil hectares ardidos, 521 empresas e mais de 4.500 postos de trabalho afectados em 30 municípios.
É o caso da falta de meios para o combate aos incêndios. Ficou-se a saber: quinze dias antes dos incêndios de Outubro, a ANPC (Autoridade Nacional de Protecção Civil) pediu à tutela autorização para reforçar os meios, mas das 105 equipas pedidas, o Governo só autorizou 50; um pedido de reforço de 40 operacionais da Força Especial de Bombeiros foi recusado; um pedido de reforço de quatro meios aéreos ligeiros, apresentado em Julho foi recusado; um outro pedido para a locação de quatro aviões anfíbios médios, precisamente para o período entre 13 e 31 de Outubro foi também recusado; um pedido feito em Setembro para o reforço de 200 horas de voo suplementares para duas parelhas de aviões anfíbios médios” foi igualmente recusado. As recusas do Governo sustentaram-se essencialmente em falta de “fundamento legal”.

Como tinha acontecido em Junho em Pedrógão, voltaram a verificar-se falhas do Estado, isto é, parece não se ter aprendido nada com o que então aconteceu. Não era só a Ministra que era a mesma, a estrutura da Protecção Civil manteve-se, só tendo sido alterada depois de 16 de Outubro. Apesar dos avisos meteorológicos, o combate aéreo surgiu muito tarde, dando tempo aos fogos para progredirem a uma velocidade enorme. O próprio presidente da Câmara de Oliveira do Hospital reagiu a este Relatório afirmando que “esta tragédia não teria acontecido se tivéssemos meios aéreos na primeira hora” e ainda que “todos ficaram abandonados”. As Forças Armadas foram chamadas, para serem deslocadas para outros locais depois de chegarem aonde lhes tinha sido antes determinado. O Relatório aborda ainda a desorganização/incompetência no ataque aos incêndios apontando por exemplo, que “os Postos de Comando Operacional estavam deficientemente localizados e estavam desfasados na sua dimensão e complexidade, não conseguindo corresponder às necessidades exigidas pelo ataque ao fogo”.
Mas o Relatório da CTI2 refere também a possibilidade de o incêndio inicial na Lousã ter tido origem na queda de uma árvore sobre uma linha de média tensão, o que remete imediatamente para a questão das responsabilidades. Ninguém é responsável pelas condições meteorológicas extremas verificadas nas Beiras naqueles dias fatídicos. Mas a falta de decisões dos responsáveis políticos nos meses anteriores e mesmo as suas decisões erradas naqueles dias podem ter tido um papel crucial nas consequências gravíssimas dos incêndios, a começar pelo número de mortos. Todos sentimos que a hora é do Ministério Público que, face ao presente Relatório, parece ter bases mais do que suficientes para proceder às suas investigações e acusações, se for caso disso. Em Outubro, o Presidente da República devolveu dignidade ao Estado, com a sua actuação firme mas agora não deve, não pode permitir que se passe um pano sobre o que se passou naqueles dias de Outubro de 2017.

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